Uma história (muito) mal contada [XVIII]

“O CCB e o AO90”

No dia 20 de Janeiro de 2012 foi noticiada a nomeação de Vasco Graça Moura (VGM) para a Direcção Administrativa e Financeira do Centro Cultural de Belém (CCB). Alguns dias depois, a 2 de Fevereiro, sai — com imenso e muito justificado estrondo mediático — a notícia de que VGM manda suspender, segundo o semanário “Sol”, ou anular,  garantia o “Diário de Notícias”, ou “manter em vigor a velha ortografia“, como diz a rádio “TSF”, ou ainda, como titulava o “Público”, “dá ordem aos serviços para não aplicarem” o “acordo ortográfico” no CCB.

Mas a notícia bombástica foi, em suma, que o AO90 estava a ser utilizado nos serviços de uma entidade dependente do Estado (Secretaria de Estado da Cultura) e o seu novo Director, nomeado pelo Governo, ordenou aos serviços dessa entidade que deixassem de utilizar o AO90.

Como é normal num país que se pretende livre, cada órgão de comunicação social (OCS) noticiou o acontecimento à sua maneira. As palavras escolhidas para intitular uma notícia não são meramente casuais ou arbitrárias e ainda menos arbitrárias ou casuais são as que se usam no tratamento, no desenvolvimento e na análise dessa notícia. Os conteúdos noticiosos dependem de uma série de factores, a começar pelas orientações (e ligações) políticas específicas de cada OCS e, em última análise, pelas opiniões do jornalista que relata o sucedido.

Ora, sucede que, de mais a mais quando uma opinião se forma (não só mas também) a partir de notícias que são elas mesmas mais opinativas do que noticiosas, qualquer cidadão tem também o direito de exprimir o seu próprio ponto de vista.

Vejamos.

Em relação à polémica decisão de banir o Acordo Ortográfico dos documentos do Centro Cultural de Belém, o recém-empossado director admite que possa ter causado algum incómodo junto do executivo, mas assegura que não houve intenção de afrontar o Governo com esta medida. E defende que sem vocabulário ortográfico comum, preparado com intervenção dos sete países signatários do Acordo através dos seus organismos e instituições, as alterações exigidas à grafia não são sequer aplicáveis.

Excerto de notícia (com ortografia corrigida) do “DN” de 12.02.12

«o recém-empossado director admite que possa ter causado algum incómodo junto do executivo»
“Algum incómodo”? Mas tendo sido nomeado para aquele cargo pelo mesmo executivo, em Janeiro de 2012, não terá o próprio dado conhecimento prévio dessa sua intenção ao executivo que o nomeou? E se houve conhecimento prévio, logo, acordo entre executivo e nomeado, então que “incómodo” poderá ter causado ao executivo a decisão do nomeado?

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Uma história (muito) mal contada [XVII]

Zamora_RPB

A fronteira de Zamora

Há mais fronteiras para além das territoriais, sejam elas naturais ou políticas. Há também as fronteiras morais ou ideológicas e ainda as temporais. Em qualquer dos casos, uma fronteira é sempre uma linha imaginária que se pode desenhar fisicamente, por exemplo com um risco pintado transversalmente numa estrada, ou que se pode traçar apenas mentalmente — o tipo de linha fronteiriça mais sólido e perene que existe.

De facto, as fronteiras nacionais entre Portugal e Espanha ficam um pouco mais a Oeste da cidade leonesa de Zamora, mas esta história poderia dividir-se, como se faz com a.C. e d.C., em antes de Zamora (a.Z.) e depois de Zamora (d.Z.). Trata-se portanto de uma fronteira temporal, não física, e representa um marco muito significativo: dali (ou de então) em diante, tudo seria completamente diferente.

Os anos de 2008 a 2011 foram, por isso, uma espécie de pré-história da nossa luta contra o AO90: em 2008 aventámos a possibilidade de se avançar com uma ILC, em 2009 começámos a estruturar o movimento, 2010 foi o ano do lançamento da iniciativa propriamente dita e em 2011 reunimos apoios, juntámos esforços, promovemos e consolidámos a ideia de que o “acordo” poderia ainda vir a ser derrotado.

Mas não estava nada fácil, convenhamos. Ao longo daqueles quase quatro anos, até aos primeiros meses de 2012, parecia que a governamental “política do facto consumado” se tinha já instalado definitiva e irreversivelmente: na verdade, muito pouca gente acreditava sequer fosse ainda possível fazer alguma coisa para travar o passo àquele crime de lesa-património.

Fez-se o que se pôde, porém, nesses dificílimos tempos. E a pouco e pouco, muito lentamente, com a persistência que advém da convicção firme, fomos conseguindo fazer passar a mensagem, reunindo informação e contactos, recrutando voluntários e apoiantes (até no estrangeiro), promovendo acções públicas (geralmente com apenas um punhado de activistas),  publicando conteúdos de “agitprop” e tentando “furar” o mais possível a cortina de silêncio em que os “media” tinham encapsulado a iniciativa.

Pouco depois do gigantesco balde de água fria que nos foi atirado da Rua do Viriato, onde era a sede do “Público”, recebi um convite para ir a Espanha — ele há mesmo milagres, como se vê, e nem todos são pura ilusão de óptica — “falar sobre o AO90” na Fundação Rei Afonso Henriques, em Zamora.

Foi tudo (excelentemente) tratado, arranjado, organizado pela nossa camarada Rocío Ramos, escusado será dizer. Por mim, apenas teria de arranjar alguém para conduzir nas viagens de ida e volta, já que iria precisar do tempo do trajecto para rever notas e documentos, reavivar memórias, ensaiar minimamente  o “discurso”, digamos, e as perguntas da assistência a que provavelmente teria de responder. Viajando no próprio dia, iríamos chegar apenas uma hora antes do evento e ainda seria necessário mudar de roupa…

Ah, a propósito, por falar em roupa.

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Uma história (muito) mal contada [XVI]

CTT1Eureka…

De vez em quando, é fatal como o destino, lá aparece alguém — por regra e por definição, um tipo que a gente nunca viu mais gordo ou uma fulana que igualmente mas mais esbelta — com uma ideia genial, fabulosa, supimpa, ena, isto agora é que vai ser, cheguem-se vocêzes p’ra lá que eu é que sei, eu é que percebo disto, vá, xô, andor, seus camelos, pá.

Convém, quando estas aparições aparecem, munir-se a gente de um vasto manancial de pachorra e de não despicienda quantidade de pacotinhos de chá (sem cafeína), mas pronto, ora diga lá vossemecê o que lhe ocorreu assim de tão extraordinário. Ah, fazermos uma petição em vez da ILC, ok, não está nada mal lembrado, não, senhor. Ah, pois, irmos recolher assinaturas nas ruas, nas estações de Metro e dos comboios, a modos que nos mercados e feiras (olha, a Feira do Livro, certo, esta ideia tinha-se-me varrido da alembradura ) e nas praias e assim.

Com certeza. A gente depois diz-lhe alguma coisinha, sim? Atão vá. Cumprimentos lá em casa.

Ossos do ofício, cá estão eles outra vez, os malditos, isto das iniciativas cívicas mais parece a Capela dos Ossos, aquele chocalhante monumento que existe em Évora, ele há que levar nestas coisas com cada esqueleto que só visto. Enfim, quero dizer, nós cá, na ILC, sempre fomos mais bolos — como dizia o célebre José Severino — e portanto sempre preferimos tentar coisas sérias.

logo_shareEm 17 de Novembro de 2011, tivemos finalmente um vislumbre daquilo que poderia vir a ser o mais do que improvável triunfo da ILC: reunimos pela primeira vez com Nuno Pacheco, Director-Adjunto do “Público”, e nessa reunião ficou estabelecido que o jornal publicaria um “encarte“, em cinco edições consecutivas, com o impresso de subscrição da ILC e indicações de preenchimento e envio; mais ainda, cada uma dessas publicações seria acompanhada de um texto de motivação e apelo à subscrição, sendo esses textos redigidos por autores convidados por nós expressamente para o efeito. Poderia vir mesmo a ser possível, caso a Direcção do “Público” autorizasse essa despesa extra, que os impressos fossem enviados via RSF (Resposta Sem Franquia); em alternativa, como aventado pelo próprio Director-Adjunto do jornal, «poderia ser até uma página destacável, impressa num dos suplementos. Mas isso não resolve o principal problema, que é o de levar as pessoas a porem o papel num envelope e enviarem-no pelo correio.»

Por conseguinte, qualquer das hipóteses era boa, excelente, fosse qual fosse a opção escolhida estava debelado o impasse. De facto, após o natural (e inerente) “boom” inicial, rapidamente o afluxo de assinaturas tinha começado a decrescer enormemente e acabou por chegar a uma decepcionante média diária rondando as 10 subscrições, e sempre a diminuir, até encravar nas 5 por dia.

Foi desta reunião no “Público”, e das conversas e trocas de mensagens subsequentes, que surgiu a “solução”: pela primeira vez o problema das assinaturas estava “resolvido”. Ou seja,  supondo que seriam distribuídos 30.000 exemplares por edição, então teríamos, numa só semana, 150.000 impressos de subscrição nas mãos dos nossos compatriotas; ora, se apenas 20% deles enviassem a sua assinatura…

Porque, naquela altura, a prioridade era, muito simplesmente, entregar o mais depressa possível a ILC no Parlamento. Mas sempre tendo em atenção que sem um número esmagador de subscrições (pelo menos o triplo do exigido, digamos) seria muito difícil a abolição da “disciplina de voto“.

Mas já então algumas pessoas, que certamente não tinham lido uma única linha sobre o assunto (algumas julgavam até que bastava entregar a ILC para ela estar automaticamente aprovada), nos perguntavam amiúde quantas assinaturas já tínhamos recolhido.

Mário Crespo, na entrevista ao “Jornal das 9”, perguntou-me isso mesmo 3 dias depois de a recolha de subscrições ter sido iniciada!

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Uma história (muito) mal contada [XV]

O estado do direito democrático – 2

A borra? Qual borra? Não há borra. Isto ele é tudo gente fina. Enfim, não há borra mas há espuma, babugem.

As hostes acordistas estratificam-se em três classes sociais: a alta burguesia, a gente-com-dinheiro-que-até-mete-nojo e a aristocracia aspirante. É claro que toda esta malta “de algo”, como sucede pelo menos desde que em Paris cortaram o lindo pescoço de Maria Antonieta ou  em Lisboa quebraram os ossos aos Távoras, carece imenso de seus lacaios, mordomos, homens-de-mão e fieis escudeiros, enfim, de todo um arraial de serviçais que providenciem de forma expedita o que mandarem suas (deles) Excelências. É precisamente com os serviçais que temos nós outros de batalhar, ora pois, que os senhores não se chegam à frente, é o chegas, e por isso mesmo alguns ingénuos entretêm-se amiúde a tergiversar com paus-mandados, testas-de-ferro, simples marionetas que apenas sabem papaguear o que lhes foi ordenado pelos respectivos patrões.

Disto resultam aquelas intermináveis discussões técnicas sobre o AO90, que já todos lemos (a granel) e cuja utilidade se resume a servir na perfeição os objectivos dos ditos “patrões”, ou seja, é um passatempo — em sentido literal. Os pareceres anteriores à aprovação chegam e sobejam para desmontar os pressupostos “técnicos”, o cAOs vigente chega e sobra para demonstrar as suas consequências.

De resto, convenhamos, a estratégia de entreter o pagode com as parvoíces debitadas por mercenários a soldo foi muito bem urdida: o tempo joga a favor dos verdadeiros acordistas, aqueles que manobram na sombra. Trata-se de intoxicar a chamada opinião pública, portanto, mas é principalmente uma questão de “timing“: como sabemos, glosando a célebre máxima de um dirigente da bola, também ele pertencendo à classe social da gente-com-dinheiro-que-até-mete-nojo, “o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira“.

Já tenho afirmado, em resposta a essa questão colocada por jornalistas, que o acordo que Portugal assinou há vários anos atrás (porque tal acordo já foi assinado) não representa nenhum benefício para a língua e cultura portuguesa, pelo que não traria qualquer prejuízo que não entrasse em vigor. De resto, não vejo qualquer problema em que o português escrito possa ter grafias um pouco diferentes conforme seja de origem portuguesa ou brasileira. Antes pelo contrário, ajuda a mostrar a diversidade das expressões e acentua os factores de diferenciação que nos distinguem realmente e que reforçam a nossa identidade. Aliás, considero míope a visão de que o mercado brasileiro de cultura passará a estar aberto aos autores portugueses em razão da homogeneidade da grafia, pois que o interesse desse mercado pela nossa produção só pode depender do real interesse pelas nossas especificidades e aí a suposta barreira do grafismo não chega a ser uma barreira, pode ser um factor de distinção que acentua o interesse pela diferença.

Com os melhores cumprimentos

Pedro Passos Coelho

Publicado originalmente no blog “Cenáculo de um (pseudo) filósofo“, em 20 de Maio de 2008, da autoria de Ruben D. Reproduzido no “site” da ILC-AO em 22.06.11.

Ora, como dizia uma senhora da política, lá vem outra citação, “o senhor sabe que eu sei que o senhor sabe que eu sei” que mentira é mentira e que verdade é verdade. Não é “consoante” coisa alguma.

Mas na política, especialmente em países que têm uma relação problemática com a verdade, pelos vistos, vale mesmo tudo e portanto, cá vai mais uma citação, caramba, já estamos a ficar monótonos, desta vez apenas uma singela palavrinha de não menos lapidar e singelo político: “habituem-se!

Claro que a “recomendação” foi proferida em contexto diferente e tinha outros destinatários, mas serve na perfeição para ilustrar o conceito.

Habituem-se a quê, afinal? À vigilância constante, ao controlo remoto, ao sequestro da correspondência, às escutas sistemáticas (ou esporádicas), à devassa da vida privada?

Habituem-se ao arbítrio, ao abuso de poder, à imposição selvagem de uma mentira descabelada?

Habituem-se ao esmagamento da personalidade porque nem a objecção de consciência nos é permitida?

Pois bem, mais uma vez tenho de parafrasear, peço desculpa, “não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes”, ou seja, maus hábitos.

«É que isto não é uma questão linguística, é uma questão política.»

Malaca Casteleiro
Jornal Expresso, 20.02.08

Já cá se sabia.

Mas assim como não têm os cidadãos livres qualquer motivo para se deixarem intimidar por ameaças, também não têm de acreditar em tudo aquilo que lhes sopram aos ouvidos (ou lhes enfiam pelos olhos adentro). Pelo contrário, de resto: não existe cidadania sem liberdade e não existe liberdade sem consciência, pelo que é um dever cívico de todos a participação activa nos assuntos da res publica, através do escrutínio responsável (e responsabilizante) dos seus representantes nas instâncias do Poder, ou seja, dos políticos — e em especial das suas mentiras.

Mentiras essas que, no que respeita ao “acordo ortográfico”, são fabricadas em quantidades industriais, como já vimos e continuaremos a ver; surgem continuamente, umas atrás das outras, as patranhas.

Há resistências de algumas pessoas, e não são muitas, que têm uma relação emocional, clássica, física e sensorial com a Língua. Mas ninguém será abatido, preso ou punido se não aderir às novas normas. O Acordo é uma simplificação da Língua.

[José António Pinto Ribeiro, ex-Ministro da Cultura, in semanário “Expresso“, 19.08.08.]

Então e os alunos — que não podem recusar a “simplificação”?

Então e os magistrados — que são efectivamente punidos se não aderirem às “novas normas”?

Então e os funcionários públicos, todos eles, que são obrigados a usar aquela porcaria — ou arriscar um processo disciplinar e, portanto, sofrer sanções, despromoção ou até mesmo irem para o olho da rua?

Então e os jornalistas, que idem, aspas, outro tanto e igualmente?

E então todos nós, simples leitores, que temos de levar com aquilo em tudo quanto é livro, jornal, revista, legendagem, cartaz, folheto ou factura e até nos programas de computador?

Nada disto é punição, Sr. ex-Ministro da Cultura? Processos disciplinares, castigos, despromoções, despedimentos, reprovações, e o diabo, tudo isto é uma brincadeirinha, Sr. ex-Ministro?

Forçar um ser-humano (normal) a ler textos cheios de erros ortográficos não é “ser punido”, senhores políticos? Não é uma violência obrigar os cidadãos a utilizar aquela coisa para redigir um simples  requerimento a qualquer serviço do Estado?

Deixemo-nos de governamentais rodriguinhos.

A questão é política, sim, mas é também (ou principalmente) económica. A maioria que determinou a entrada em vigor do AO90 não resultou dos votos dos deputados do Partido A mais os do Partido B a que se somaram os do Partido C. Nada disso. Essa maioria proveio de uma única “bancada”: a do Partido D, ou seja, o Partido do Dinheiro. Ao contrário dos outros Partidos, o PD não é nem vermelho nem verde nem azul nem cor-de-rosa nem cor-de-laranja — porque o dinheiro não tem cor.

Por alguma estranha razão, passaram totalmente despercebidas do “grande público” certas afirmações que Maria Alzira Seixo proferiu publicamente em mais do que uma ocasião. Afirmações estas que, na minha opinião, não apenas retratam fielmente o fulcro da questão (política mas principalmente económica, repito) como anulam quaisquer especulações sobre o assunto.

  • [3′:10”] Já fui acusada de muitas coisas, para além de estar em muitas listas negras e para além de várias dificuldades com que tenho deparado na minha vida profissional desde que, em 2008, tomei posição contra o acordo ortográfico.
  • [14′:12′] Há três razões para esta loucura gananciosa que dá pelo nome de acordo ortográfico. Que é completamente louco e parte de um objectivo de ganância. Dir-me-ão: mas ganância porquê?
  • [22’40”] A grande razão, qual era a grande razão política? Era uma razão de país diminuído e que se quer afirmar; temos não sei quantos milhões de falantes, temos que entrar na ONU e sobretudo o Brasil está a crescer, vai-se afirmar e nós vamos atrás do Brasil, portanto temos que ir com o Brasil, portanto tem que ser um Português único para que não seja a variante brasileira que se siga nos documentos oficiais da ONU.
  • [35′:30”] E depois vem debilitar muito, economicamente, todos nós; aliás, já debilitou; eu não sei até que ponto o acordo ortográfico não foi um dos tais representantes do «viver acima das possibilidades das pessoas» de que tanto se falou e que não é bem assim, mas nisso foi. Nisso foi, porque obrigaram muita gente a gastar e depois os editores… e peço desculpa, isto tenho que dizer… porque agora a bola de neve constituiu-se… e uma vez que o acordo entrou em vigor por indicação do Ministério e que os manuais escolares e os dicionários começaram a escrever-se com o acordo, se agora quisermos voltar para trás, e queremos, a maior parte das pessoas querem, o que é que acontece? Acontece aquilo que eu não sabia e que provavelmente a maior parte das pessoas não sabe: é que o Ministério não pode, porque os editores assinaram um protocolo com o Ministério, segundo o qual — e isto é feito nas costas da população e a população não sabe — o Ministério tem que indemnizar regiamente os editores da despesa que já foi feita.

A Professora Doutora Alzira Seixo não iria atirar esta importantíssima informação “para o ar”, assim, sem mais nada, só porque ouviu dizer não sei quê não sei onde a não sei quem. Aliás, a gravação aqui reproduzida é de Março de 2013, mas já antes a tinha eu ouvido dizer o mesmo, no jantar que se seguiu a um evento no Instituto Goethe, em 9 de Janeiro de 2012.

Falta agora “apenas” descobrir esse tal “memorando” celebrado entre o Estado e as editoras. Note-se, quanto a este importantíssimo, decisivo “detalhe”, que não se trata de um contrato entre determinado Governo e certas editoras, trata-se de um compromisso assinado entre o Estado português e entidades representantes dos editores nacionais. É algo de perene, portanto, sem prazo de validade, independentemente de qualquer statu quo partidário, de qualquer maioria parlamentar ou do gabinete governamental que venha de futuro a entrar em funções. Existindo de facto uma cláusula de “régia indemnização” e sendo essa a única forma de resolução constante do dito “memorando”, então já sabemos quem realmente são os “donos disto tudo”.

E se isto não explica, pelo menos em boa parte, a “teimosia” dos Partidos do chamado “arco da governação” na protecção férrea ao AO90, então, se calhar, já mais nada poderá explicar grande coisa nesta matéria.

Porque é que as sucessivas maiorias parlamentares continuam cegas, surdas e mudas quanto à contestação ao “acordo ortográfico”, a sua inutilidade, os incalculáveis prejuízos que acarreta?

Eis aí uma resposta, clarinha como água: dinheiro.

Não é o único motivo, pois claro, mas de qualquer forma esta História já começa a ficar (muito) menos mal contada.


Imagem de Hiroshi Bogéa.   

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Uma história (muito) mal contada [XIV]

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Consciente da nova situação de países, como o nosso, de democracia mitigada pelos arranjos e conveniência dos representantes do poder político e outros poderes, procurei manter certos cuidados na investigação que, creio, são regras úteis de prudência e que recomendo:
1. Nunca revelar a identidade da fonte. Este é o primeiro cuidado, uma condição fundamental de honestidade. Essa protecção das fontes deve resistir até à tentativa de jornalistas e dos curiosos, e não quebrar perante a pressão judicial.
2. Despistar fontes de informação falsa, desinformações e manobras de intoxicação.
3. Usar processos de contacto encriptados, mais seguros do que as comunicações nacionais, mais ou menos controladas pelo Estado, mais fáceis de interceptar por ‘rogue agents’ ou servicinhos privados de agentes públicos. Não usar telemóvel nem telefone para conversas e fontes sensíveis e ter a prudência de considerar que as suas comunicações de telefone e telemóvel podem ser interceptadas. Não significa que sejam: podem ser.
4. Marcar os encontros pessoais com muito pouca antecedência para evitar preparativos de vigilância.
5. Em encontros e conversas importantes, desligar telemóvel e remover a sua bateria, inclusive na deslocação, e evitar a Via Verde nas auto-estradas.
6. Nos encontros, ser discreto, escolher locais isolados, e silenciosos, ou públicos, movimentados e barulhentos, de forma a tornar mais complicada a intercepção das conversas, evitando, além disso, pronunciar a informação mais perigosa, escrevendo-a codificada à frente da pessoa com quem se encontra e destruindo o registo em seguida.
7. Informar duas pessoas de absoluta confiança dos contactos que vai realizar, por uma questão de segurança face a acidentes e incidentes.
8. Escrever o mínimo, no computador ou em papel, guardando a informação na memória… do cérebro.
9. Escrever imediatamente as informações obtidas depois de as apurar, numa aplicação à edição do método FIFO (First In, First Out). A publicação imediata é o modo mais eficaz de segurança, pois a eliminação, ou comprometimento, do alvo não resolve a divulgação do que este sabe, já que, em cada momento, o alvo tende a não saber nada mais do que já publicou…
10. Finalmente, o último cuidado é não abrandar o rigor dos procedimentos de segurança.

António Balbino Caldeira*

Este pequeno excerto, retirado d’O Dossiê Sócrates, da autoria de António Balbino Caldeira*, poderia muito bem ser publicado em forma de folheto, numa simples folha A4, para servir como “Manual do Activista”. De qualquer activista, bem entendido, na presunção de que, em democracia, o activismo é, sempre e por definição, cívico; a expressão “activismo cívico” é uma evidente redundância porque, se não é cívico, então não é activismo: num Estado de Direito será, por exclusão de partes, ou subversão ou terrorismo.

Pronto, está bem, mas o que tem a investigação sobre o diploma de Sócrates a ver com a luta contra o AO90?

Tem tudo a ver.

Não apenas porque o “Manual do Activista” vale nos dois casos, serviu em 2007/8 para aquele efeito — no qual, modestamente, também participei — como serviu a partir de 2009 e continua a servir para a investigação sobre o “acordo ortográfico” e, é claro, na luta contra ele. Afinal, apesar de ter mudado entretanto a maioria parlamentar, logo, o Governo, todos os pressupostos e as consequentes regras de conduta e cuidados postulados neste “Manual” mantêm-se válidos.

Pelo contrário, o centro governamental de comando e controlo dos media vai apertando cada vez mais a malha. Pelo que, evidentemente, temos de redobrar as medidas de precaução.

É um processo extremamente perigoso. Não há um juiz, não há uma acusação, nem um processo em tribunal. O que significa que se o leitor tem um site ou um blog onde escreve regularmente e as SGC e a IGAC não gostarem da sua opinião, nada os impede de enviar o link do blog do leitor para os ISPs bloquearem no prazo máximo de 15 dias.

O blog/site é bloqueado e o autor nem sequer se pode defender.

Paula Simões

Memorando de Entendimento: Bloqueio de Sites em Portugal #PL118

Para quem nunca entendeu a estranha frequência com que o “site” da ILC-AO ficava (e continua a ficar) “indisponível”, bom, está aqui pelo menos uma parte da explicação: já não bastavam as denúncias electrónicas feitas por anónimos, havia que arranjar um pretexto e pronto, arranjou-se, o “erro 404” passou a ser opção legal.

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