Dar à língua

«(…) algumas pessoas que só falam das questões lusófonas por razões negativas, sendo que, nalguns casos, o fazem até com indisfarçado júbilo.»

Como diriam brasileiros: “oi? É nóis.”

Enfio de bom grado, com cagança e pundonor, qual forcado da cara numa pega rija, o competente barrete. Confesso, eu cá só falo dessas tais “questões lusófonas” por “razões negativas” (há outras?) e faço-o não apenas com “indisfarçado júbilo” como até com manifesto gozo: apreciamos basto ficções, invenções e ilusões, é por isso, daí a piada.

E não apenas apreciamos esse tipo de números “lusófonos” como não desprezamos usar, quando em vez, nosso plural majestático. Sim, que a 1.ª pessoa do plural tem — como toda a gente sabe — muitíssimo mais pinta do que a 1.ª do singular, essa pessoinha desprezível.

Consideramos, por conseguinte, eu e aqui o Garfield da vizinha, que em mais este texto perpassa a já bocejante obsessão pelo “gigantismo” da língua (ou seja, do Brasil), a estranha fixação pelos “260 milhões” de “falantes” (dos quais “só” 240 milhões são brasileiros) que serão mais não sei quantos milhões não sei quando nem sei onde, mai-la costumeira teoria do “crescimento” (“exponencial”) da língua aliando esta a uma “defesa” que não sei quê e à “difusão” não sei das quantas.

Enfim, quero dizer (ou queremos significar), cá na minha (nossa), a conversa fiada da “lusofonia” já chateia. E já parava.

Mas parece que não, temos agora duas indústrias paralelas, quais Pepsi e Coca-Cola por escrito: uma para dar a língua, a outra para dar à língua.

Opinião

Língua portuguesa, do lirismo ao desastre? Resposta a Nuno Pacheco

São as autoridades de cada um dos Países de Língua Oficial Portuguesa que, legítima e soberanamente, têm reafirmado a sua aposta na defesa e difusão da língua portuguesa.

Renato Epifânio
“Público”, 29 de Junho de 2018

Sabemos que não é o caso de Nuno Pacheco (NP), mas o seu artigo “Língua portuguesa, do lirismo ao desastre” (PÚBLICO, 14.06.2018) não pôde deixar de nos lembrar algumas pessoas que só falam das questões lusófonas por razões negativas, sendo que, nalguns casos, o fazem até com indisfarçado júbilo.

Feita esta justa ressalva, vamos então ao teor do texto. No essencial, NP contesta “que a língua portuguesa, se é falada hoje (garantem) por mais de 260 milhões de seres, sê-lo-á por 400 milhões até 2050 e por nada menos do que 600 milhões até ao final do século”. Fá-lo, porém, a nosso ver, misturando bons e maus argumentos. Daí a nossa resposta.

Começando por dar razão a NP, importa reconhecer que, na realidade, os únicos países de língua portuguesa (no sentido em que nesses países se fala massivamente a nossa língua) são, no presente, Portugal e Brasil. E se é incontestável, como alega NP, que “o Brasil está numa tremenda crise (também em matéria educativa)”, não será por isso que no Brasil se deixará de falar a nossa língua. A língua portuguesa é no Brasil uma realidade mais do que consolidada, sendo também, por via disso, um dos grandes factores de coesão nacional, apesar de todas as crises.

Atravessando o Atlântico, a situação já é bem diferente, como importa igualmente reconhecer. Em todos esses países, o número real de falantes de língua portuguesa está muito aquém da maioria. Aqui, porém, mais do que para os dados, importa olhar para as tendências. E o que estas nos antecipam é que a tendência é de crescimento, assim se consolidem os diversos sistemas de ensino. Esse tem sido, até ao momento, o maior obstáculo a esse crescimento.

Aqui, a única (semi-)excepção é Cabo Verde, que, como refere NP, está entretanto a apostar mais no crioulo do que na língua portuguesa. Pela nossa parte, acreditamos que essa tendência não é irreversível, desde logo porque a língua portuguesa tem, em relação ao crioulo, uma vantagem óbvia: enquanto o crioulo será apenas uma língua de comunicação interna, a língua portuguesa garante uma comunicação a nível internacional. De resto, situação similar se passa em Timor-Leste: apesar da força do “tétum”, as autoridades timorenses não deixam cair a língua portuguesa porque perceberam isso há muito tempo.

Em suma: são as autoridades de cada um dos Países de Língua Oficial Portuguesa que, legítima e soberanamente, têm reafirmado a sua aposta na defesa e difusão da língua portuguesa. Obviamente, não o fazem para agradar a Portugal. Fazem-no (talvez até, nalguns casos, a contragosto) porque sabem que isso é do seu essencial interesse. À medida que o Estado em cada um desses países se for consolidando (também a nível do sistema de ensino), é mais do que previsível que o número real de falantes de língua portuguesa vá crescer exponencialmente, até porque esses países se mantêm em expansão demográfica (neste plano, a única excepção é, como se sabe, Portugal).

Tudo isto são, porém, aspectos quantitativos. Ora, mais importantes são, a nosso ver, os aspectos qualitativos. E aqui, de facto, o cenário é bem menos auspicioso: esse conjunto em crescendo de pessoas que falam a língua portuguesa está ainda longe, muito longe, de formar uma real comunidade. Nalguns casos, cada vez mais longe. Sendo que aqui as razões são outras: no Brasil, por exemplo, o sistema de ensino continua a diabolizar, em grande parte, a colonização portuguesa; em África, em geral, a situação não é muito diferente; depois, têm existido alguns incidentes político-diplomáticos, como entre Portugal e Angola; corolário de tudo isso tem sido a crescente inércia da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que, mais do que uma redinamização, precisa de uma refundação.

Ainda assim, o facto de um país como Angola estar a multiplicar as suas relações (com os países anglófonos e francófonos, como NP salienta) não fará com que Angola deixe de ser um país lusófono, cada vez mais lusófono, ainda que só linguisticamente. O que mais importa é, sobre isso, consolidar uma cooperação (a todos os níveis) digna desse nome. Aí sim, Portugal pode e deve fazer muito mais. Já quanto às nossas comunidades de emigrantes, o cenário é bem diferente: a esse respeito, NP refere, citando Onésimo Teotónio de Almeida, que “o movimento de crescimento do português está nos Estados Unidos da América a ter uma curva descendente desde 2015”. E o mesmo tem acontecido, acrescentamos nós, noutros países com fortes comunidades portuguesas.

Há, a nosso ver, duas razões para tal: em primeiro lugar, é natural que, à medida que as gerações se sucedem, a ligação com a língua portuguesa se vá desvanecendo, sobretudo porque (e essa é a segunda razão) não parece haver motivos para contrariar essa tendência, a não ser os afectivos/ familiares. Quando, nalguns casos, são as próprias autoridades políticas e académicas portuguesas a promoverem uma visão envergonhada da nossa história e cultura, que estímulo podem ter os netos ou bisnetos de portugueses para aprenderem a nossa língua? Falamos por nós: se tivéssemos nascido nos Estados Unidos da América ou em França, apenas para dar dois exemplos, e se nos tivéssemos deixado formatar pela “cultura dominante” (bem visível, por exemplo, na polémica em curso sobre o “Museu dos Descobrimentos”), não teríamos o menor estímulo para manter uma ligação linguística com Portugal. Pelo contrário.

https://www.publico.pt/2018/06/29/culturaipsilon/opiniao/lingua-portuguesa-do-lirismo-ao-desastre-resposta-a-nuno-pacheco-1836095

AO90: a teta gigante [Nuno Pacheco, “Público”, 28.06.18]

Afinal Ricardo Araújo Pereira tinha razão

Agora dizem-nos que tecto se lê “têto” Sim, leram bem: têto, com acento circunflexo.


Público”, 28.06.18

 

Num dos filmes da primeira fase de Woody Allen como realizador, O ABC do Amor (1972), há uma cena delirante onde um homem (ele próprio, como actor) é perseguido por uma aterradora mama gigante, num tributo cómico e burlesco aos clássicos de terror (não por acaso, o cientista louco do filme é encarnado por John Carradine). Ora é impossível não pensar nesta delirante cena quando se ouve Ricardo Araújo Pereira falar, a propósito dos equívocos do acordo ortográfico de 1990, em “arquitetas”. É uma imagem a que ele costuma recorrer, para mostrar os absurdos da chamada “nova ortografia”. Claro que os defensores do dito AO dirão que é má vontade, que é óbvio que se lê “arquitètas” e não “arquitêtas”, toda a gente sabe. Sabe? Pois agora vem o Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (não confundir com a própria ACL, já que a esta preside Artur Anselmo, cultor do bom senso ortográfico, e àquele preside agora Telmo Verdelho, defensor acérrimo do AO90), através do seu Vocabulário, explicar como se fala, para evitar equívocos. E o que diz o Vocabulário? Procura-se por arquitecta e não há; procura-se arquitecto e surge “arquiteto”, com esta explicação: “nome masculino, Grafia AO1945: arquitecto.” Sem qualquer indicação de pronúncia. E tecto? Aqui sim, explica-se. Diz a respectiva fichinha: “teto /ê/ nome masculino, Grafia AO1945: tecto.” Sim, leram bem: têto, com acento circunflexo. Assim ensina o douto instituto a pronúncia correcta de tecto, ou melhor, teto, aliás, têto. Por analogia directa, arquitecto ler-se-á arquitêto e arquitecta ler-se-á arquitêta. Em “bom português”, meus senhores! Razão tinha Ricardo Araújo Pereira. Só falta mesmo a maléfica “arquiteta” de Woody Allen.

Não é exemplo único. Se procurarmos o tristemente célebre “espetador”, o Vocabulário mostra-nos tal palavra com esta nota: “espetador /ô/, adjetivo, nome masculino, Grafia AO1945: espectador, Grafia dupla: espectador.” Como a única indicação fonética é “ô”, deduz-se que se lê “espetador”, tal como o sujeito que espeta, e não “espètador”, como nos garantem que se lerá. Mas se procurarmos no mais trivial Dicionário Priberam, edição digital brasileira, lê-se isto: “espetador /èt…ô/ s. m. […] Etimologia: latim spectator, -oris. Grafia no Brasil: espectador.” Não só indica a fonética de forma mais completa, o que no Vocabulário da ACL se omite, como diz que “espetador” não existe, com tal sentido, na grafia brasileira.

Mas para que o instituto não fique sozinho na sua arte de ensinar o “bom português”, e já que estamos em época de exames, não fica mal recordar que a Associação de Professores de Português, pela voz de Paulo Feytor Pinto ou Edviges Ferreira (hoje seus ex-presidentes), chegou a bramar pela punição dos que não cumpriam o AO90 nas escolas, garantindo Paulo Feytor Pinto que bastaria uma meia hora para que os professores aprendessem as regras do acordo. Pelos vistos, não bastou uma década. No ano passado, o parecer da própria APP à prova do 12.º ano de português, além de má pontuação (vírgulas e pontos fora do sítio) e um erro inadmissível em professores (12º, como doze graus, em lugar de 12.º, como décimo-segundo), tinha palavras do AO90 como objetivas, objetivamente, correta, perspetivas e objetividade, a par de objectivas ou percepcionar, que, sendo correctas pelo Acordo de 1945 (ainda em vigor na lei) não são aceites pela “nova ortografia”. Não admira, por isso, que o ponto II dos Critérios de Classificação do IAVE às provas de Português do Secundário exiba agora, desde 2017, esta nota lapidar: “A ocorrência de erros ortográficos não implica a desvalorização da resposta.” Preçeberaum bãim u alkansse distu?

Source: Opinião | Afinal Ricardo Araújo Pereira tinha razão | PÚBLICO (inseri “links”)

45% dos alunos não conseguem situar Portugal no mapa

«Então, por causa dos tais dois mil para quem o conhecimento desta língua é útil, noventa e oito mil foram torturados e em vão sacrificaram um tempo precioso. (…) Daí que seria essencialmente mais útil se ao jovem estudante fossem transmitidos apenas os contornos gerais da língua (…) Evitar-se-ia também o perigo de, de toda a sobrecarga de matéria, apenas ficarem uns fragmentos na memória, uma vez que o jovem só teria de aprender o essencial, sendo assim feita antecipadamente a selecção do que é útil e inútil. (…) Ganhar-se-ia assim no currículo o tempo necessário para a educação física (…)»

[“Mein Kampf”, Adolf Hitler]

«É indiscutível que a supressão deste tipo de consoantes vem facilitar a aprendizagem da grafia das palavras em que elas ocorriam. De facto como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção, recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção, objecção, tal consoante é um c? Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua.» [Acordo Ortográfico – Nota Explicativa [Pseudologia fantastica – 12]

 

 

 

Grande parte dos alunos que fizeram as provas de aferição de História e Geografia do 2.º ciclo, em 2017, não conseguiam localizar o país no Sudoeste da Europa.

Entre os mais de 90 mil alunos que fizeram provas de aferição de História e Geografia do 2.º ciclo, em 2017, 45% não conseguiram localizar Portugal continental em relação ao continente europeus. Esta conclusão consta num novo relatório que abrange dois anos de provas de aferição – 2016 e 2017 – de várias disciplinas e anos de escolaridade, citado pelo Diário de Notícias.

Ou seja, utilizando os pontos colaterais da rosa-dos-ventos, os alunos não conseguiam localizar o país no Sudoeste da Europa. Além disso, apenas 45% dos estudantes localizaram correctamente “o continente europeu em relação ao continente asiático, o continente africano em relação ao continente europeu e Portugal continental em relação ao continente americano”.

O presidente do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), Hélder de Sousa, não considera que estas falhas sejam por falta de conhecimento, mas sim na capacidade de o aplicar.

“Em alguns relatórios, na análise que se faz da Geografia do ensino secundário, uma das coisas um pouco anacrónicas é a dificuldade que os alunos têm em utilizar a informação cartográfica, quando a Geografia é a área em que, por excelência, estas áreas deviam estar mais consolidadas”, frisa.

Source: 45% dos alunos não conseguem situar Portugal no mapa – Portugal – SÁBADO

 

De novo, a “maravilhosa projecção internacional da língua”

Director de centro cultural português proibido de entrar na Rússia

Responsável admite que a continuidade da escola, situada em Moscovo, está em risco.

David Andrade (em Moscovo)
“Público”, 20 de Junho de 2018

 

Encontrar quem diga duas ou três palavras numa língua que não a russa nas ruas de Moscovo é um desafio. Poucos, quase todos jovens, desenrascam-se em inglês, mas as várias décadas de isolamento internacional na era soviética resultaram em que quase todos os habitantes da Rússia sejam monolingues. Há, no entanto, quem procure inverter essa realidade. Situado a cerca de dois quilómetros do Kremlin, o Centro de Língua e Cultura Portuguesa (CLCP) conta com dez professores e cerca de 250 alunos, 90% deles russos, que procuram nesta escola aprender a língua lusa. Porém, Stanislav Mikos, director e fundador da instituição, está há um ano proibido de entrar na Rússia, cenário que, segundo o próprio, pode levar ao encerramento do único centro que possui um protocolo com o Instituto Camões no país.

Nasceu na antiga União Soviética, em Kiev, e é filho de pai polaco e de mãe russa, mas, como sublinha em conversa com o PÚBLICO, é “cidadão português” e não tem qualquer outra nacionalidade. Stanislav Mikos abandonou a capital da Ucrânia quando tinha 11 anos. Cresceu nos Açores e viveu também no Porto, cidade onde se licenciou em Música e em Letras. Em 2005, mudou-se para Moscovo, fundando no ano seguinte uma escola de língua portuguesa associada à embaixada portuguesa, que posteriormente se transformaria no CLCP.

“Na altura não havia nenhuma escola de língua portuguesa e a embaixada recebia telefonemas de pessoas em Moscovo que estavam à procura de uma possibilidade de aprenderem português. Como uma das minhas licenciaturas é na área de Línguas, o embaixador sugeriu que tomasse a iniciativa de abrir uma escola. Na altura era o único que dava aulas. Agora somos dez professores — quatro portugueses e seis russos — e temos cerca de 250 alunos”, explica.

O único estabelecimento de ensino em Moscovo onde só se ensina português tem, no entanto, outras valências. “Não nos limitamos a ministrar aulas de português. A promoção da cultura portuguesa também é uma prioridade. Organizamos bastantes eventos, normalmente em colaboração com a embaixada, e, pelo menos duas ou três vezes por ano, organizamos visitas de estudo a Portugal para os nossos alunos.”

Sem explicações

Numa dessas visitas, realizada em Maio do ano passado, aconteceu o que, garante Stanlislav Mikos, só “pode ser um equívoco”: “Quando estava a regressar, apresentei o meu passaporte na alfândega russa e disseram-me que o meu nome estava na lista de pessoas a quem a entrada no país estava proibida. Disseram-me para pedir mais informações na embaixada da Rússia em Lisboa. Foi o que fiz, mas não me foi dada qualquer explicação. A nossa embaixada em Moscovo também dirigiu uma nota diplomática ao Ministério dos Negócios Estrangeiros russo a questionar por que motivo foi proibida a entrada na Rússia do director do Centro de Língua e Cultura Portuguesa, mas também não recebeu qualquer resposta.”

Apesar de continuar a dirigir o CLCP através de Lisboa, Stanislav Mikos admite estar neste “momento a lutar para salvar o centro” e que está “a perder a luta”. “As autoridades portuguesas não nos prestam qualquer apoio para me ajudar a voltar ao meu posto de trabalho. Nem sequer me ajudam a averiguar as razões do que se passou. Tendo esgotado todas as outras possibilidades, cheguei ao ponto de escrever à Presidência da República, pois o nosso Presidente estará na Rússia para assistir ao jogo Portugal-Marrocos”, revela.

Confrontado com “uma nova equipa diplomática portuguesa em Moscovo”, que “provavelmente não quer mais um problema”, este português prevê que “caso não haja nenhuma evolução positiva nos próximos meses, é bem possível que o maior centro de língua portuguesa na Rússia esteja a completar o 12.º e o último ano da sua existência”.

[“Público”, 20.06.18. Transcrição integral. “Links” e destaques meus.]

«Ficou a Academia, foi-se o bom senso» [Nuno Pacheco, “Público”, 20.06.18]

Ficou a Academia, foi-se o bom senso

Nuno Pacheco
“Público”, 20.06.18

A Academia das Ciências de Lisboa seguiu, por decisão apressada dos seus mais fervorosos acordistas, o mau caminho dos vocabulários “oficiais”. É isto ciência, senhores?

 

Em 2015, promoveu a Academia das Ciências de Lisboa um colóquio intitulado Ortografia e Bom Senso. Dois dias de intenso confronto de opiniões que deram depois origem ao documento “Sugestões para o Aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, produzido pela Academia e divulgado em 2017. O que dizia a Academia (ACL), nesse texto? Que, sendo a ACL “o órgão consultivo do Governo português em matéria linguística”, e sendo o texto do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), “por vezes, ambíguo, omisso e lacunar, não estabelecendo uma ortografia única e inequívoca”, entendia assim importante dar um “forte contributo” na “sistematização de critérios e orientações, em prol de uma maior regularização e, por consequência, na defesa de um registo adequado à variante portuguesa.” Com espírito conciliatório, esclarecia que tal “não significa rejeitar a nova ortografia, mas antes aprimorar as regras ortográficas e retocar determinados pontos para fixar a nomenclatura do Vocabulário e do Dicionário da Academia.”

Mesmo duvidando que um texto tão tecnicamente mal feito e tão prejudicial possa alguma vez ser “aprimorado”, as sugestões dadas pela ACL respeitavam o mais elementar bom senso. Pára, péla, pêlo, pôr, pôde, dêmos eram acentuados (diferenciando-se assim de para, pela, pelo, por, pode, demos); crêem, vêem e lêem recuperariam os respectivos circunflexos; a terminação –ámos (pretérito) voltava a ser acentuada, para se distinguir, no tempo verbal, de –amos (presente); acepção, corrector, espectador e óptica voltariam a imperar sobre aceção, corretor, espetador e ótica; palavras inventadas como interrutor ou concetível seriam abolidas, restaurando-se interruptor ou conceptível; e voltava a olhar-se para o hífen com lógica científica, usando-o “nas combinações vocabulares que formem verdadeiras unidades semânticas” (água-de-colónia, braço-de-ferro, pé-de-meia, etc.) e nas expressões onde a soma dos elementos forma sentido único (faz-de-conta, maria-vai-com-as-outras). Há mais, mas estes exemplos já dão uma ideia do abalo no dito “acordo”.

Há dias, numa estranha comemoração do 10 de Junho, resolveu a ACL publicar online o prometido Vocabulário. Com as sugestões de 2017? Não. Ou seja: ficou a Academia, mas foi-se o bom senso. E isso não é compreensível, mesmo para os defendem que este “acordo” só devia ter como destino o lixo. Porque as portas abertas em 2015 e 2017 foram um sinal de que nem tudo estava bem no território, absurdamente intocável, do “acordo”. Que havia erros, que podiam e deviam ser corrigidos. Ora o que nos traz este Vocabulário da ACL, que aliás vem juntar-se a mais dois “oficiais”, o do ILTEC e o da IILP, sendo este último o mais indigente de todos? Pouco ou nada que acrescente aos demais. Anunciando 215 mil entradas, promete para cada palavra a “indicação da sua grafia, categoria morfossintática [sic] e outras informações úteis, como ortoépia, formas irregulares de feminino e plural, particularidades na flexão verbal, etc.” Logo a abrir, diz: “Não sabe como escrever determinada palavra? Pesquise na nossa base de dados”. Ora vamos lá. Imagine-se que alguém pensa que se escreve “tumada” em lugar de tomada. Escreve “tumada” e surgem 5 palavras, como acostumadamente. Porque têm essa conjugação no meio. Não há um algoritmo que sugira “será que quis dizer tomada?” Nem aqui nem em nenhum dos outros vocabulários citados (ILTEC ou IILP). Conclusão: se é preciso saber escrever bem a palavra para a encontrar, então para que servem os vocabulários? Para impingir o AO90, evidentemente.

Procurem por pêlo, grafia que o AO90 aboliu e a ACL prometia ressuscitar. Saem três resultados: pelo, pelo de arame e pelo de rato. Com esta nota: “Grafia AO1945: pêlo”. Mas se procurarem por pelo, saem 74 palavras, tantas quantas tiverem pelo na sua constituição (ampelofagia, arrepelo, atropelo, etc.). E de nada vale isolar a palavra com aspas (“pelo”) para restringir a busca, como é usual noutras bases de dados. Se procurarmos, por exemplo, por espectador, saem-nos três palavras: espectador, espetador e telespectador. E não há telespetador? Há, mas temos de procurar por espetador. E, nesta palavra, há indicação de abertura da vogal em [é]? Não, há isto: [ô]. Como se alguém dissesse –dór! Inacreditável.

Há mais exemplos, muitos. Consultem e confiram. A Academia seguiu, por decisão apressada dos seus mais fervorosos acordistas, o mau caminho dos vocabulários “oficiais”. É isto ciência, senhores?

Nuno Pacheco

[“Público”, 20.06.18. “Links” e destaques meus. Imagem de topo (ACL): Por enioprado, CC BY-SA 3.0, Hiperligação]