Uma história (muito) mal contada [XXX]

vitral«Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo.»

Para Memória Futura

[PMF], funcionando como acrónimo, serviu para ir guardando registos de  acontecimentos, eventos, documentos, factos aparentemente desgarrados e até algumas ideias dispersas que mais tarde muito provavelmente dariam jeito. Foi com base nestas memórias que se conseguiu contar (menos mal) a história da ILC contra o AO90.

Que terminou, cronologicamente falando, com o  “Fim”, a 19 de Junho de 2015.  Esse foi apenas mais um texto, contudo. Nada mais. Não foi, de todo, o fim da luta. Ou, na lapidar formulação de Winston Churchill, “Isto não é o fim. Não é sequer o princípio do fim. Mas é, talvez, o fim do princípio.

Podemos dizer, com propriedade, que se tratou afinal de uma saída honrosa. De facto, colocando a questão à maneira do inefável Pangloss, foi, dadas as circunstâncias, o que de melhor poderia ter acontecido: assim, do mal o menos, a ILC-AO não findou derrotada pelos acordistas; retirou-se “de cena”, simplesmente, no momento em que surgiu outra iniciativa. A qual, esta outra, fora apresentada pelos seus promotores como tendo um carácter igualmente cívico, ao que acresce o facto incontornável de a maioria dos subscritores, apoiantes e activistas da Iniciativa Legislativa ter-se alheado desta e ter-se passado, literalmente, para aquela “Iniciativa de Referendo“.

Ora, passando-se quase toda a gente para o lado daqueles que desde 2012 mantiveram a ILC debaixo de fogo cerrado, não poderia eu continuar praticamente sozinho a lutar por algo de que a maioria tinha gradualmente desistido. Apanhado de surpresa pelo lançamento do tal referendo, tinha de reagir com urgência: praticamente de um dia para o outro, informei os meus leais companheiros do que se estava a passar e por fim tomei a decisão de publicar o “Fim” da ILC-AO; contrariando a opinião de metade desses poucos resistentes, é certo, mas, na verdade, a nenhum dos objectores ocorreu qualquer espécie de alternativa. O que tem de ser tem muita força, lá diz o povo.

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Ideologia, viu?

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Literatura portuguesa naufraga no Brasil

Flora Bender Garcia e José Ruy Lozano

A proposta beira o absurdo. O Ministério da Educação, por meio do documento intitulado Base Nacional Comum Curricular, elimina a obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa, como se, até hoje, ela tivesse sido desnecessária à educação dos jovens que conseguiram terminar o ensino médio.

Desde a primeira proposta da reforma ortográfica agora vigente, o governo brasileiro argumentava a favor da padronização linguística, dadas as afinidades culturais e a unidade em torno da língua dos países de fala e escrita portuguesa.

A lusofonia, afinal. Falamos o mesmo idioma? Então somos irmãos. Linguistas, literatos, gramáticos, historiadores, intelectuais em geral não foram convidados ao debate. E hoje ocorre o mesmo com a discussão da base curricular. Quem elaborou as atuais propostas? Ninguém sabe, ninguém viu.

O projeto do MEC para o ensino da literatura nesse segmento apresenta inovações, já adotadas por alguns colégios menos formalistas, como a inversão temporal da sequência da história literária: os alunos do primeiro ano leriam autores contemporâneos e, nas séries seguintes, mais maduros e preparados, teriam contato com obras de períodos anteriores.

Também louvável é a ênfase ao estudo da contribuição dos países africanos de língua portuguesa e à cultura dos povos indígenas.

Como, porém, apagar Europa e Portugal de nossas origens? Tirando do mapa? Surgiram artigos, nem todos contundentes, sobre a base curricular, mais focados, porém, na área de história –e um tantinho na linguagem, na norma dita padrão e na gramática. O resto é silêncio.

É difícil imaginar uma justificativa para a discriminação da cultura europeia e da literatura portuguesa. Será que, mais uma vez, a seleção de conteúdos foi contaminada por um viés político e ideológico anacrônico?

Já que Portugal teria sido uma metrópole colonialista europeia que explorou as riquezas de suas colônias e escravizou populações negras e indígenas na América e na África, agora seria o momento de dar voz à cultura dos oprimidos, em detrimento da Europa elitista e opressora.

Escritores lúcidos e críticos ao processo político colonizador lusitano, como os portugueses José Saramago e António Lobo Antunes, não poderiam ser estudados por não serem africanos, tal qual o moçambicano Mia Couto.

A Base Nacional Comum Curricular cobre apenas um rol mínimo de informações e conceitos obrigatórios, a serem complementados com outros tantos conteúdos de cunho eletivo ou facultativo. Mas deveria o estudo da literatura portuguesa ser opcional? Camões e Fernando Pessoa, sem falar do Padre Antônio Vieira e de Eça de Queiroz, dependem agora do gosto e/ou da escolha de colégios ou professores?

Como compreender a cultura popular nordestina, suas canções, seus repentes, seus cantos de aboiar, sua literatura de cordel, sem reconhecer a presença da literatura medieval da Península Ibérica, em particular as cantigas trovadorescas e as novelas de cavalaria?

E “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, e “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, nada devem ao teatro humanista português de um Gil Vicente? Fugir ao diálogo Brasil/Portugal é negar origens e contextos produtivos.

A quem interessa mudar tanto o programa de literatura? Em que buraco negro estão as milhares de sugestões feitas por quem tem conhecimento da base curricular?

O que fazer com as toneladas de livros didáticos já oferecidas anteriormente pelo próprio MEC às escolas públicas e/ou compradas pelas famílias de alunos de escolas particulares? Como atualizar os professores que aprenderam literatura portuguesa, por vezes a duras custas?

Passaremos a ter melhores classificações nas avaliações internacionais sem a cultura europeia e a literatura portuguesa? Seremos mais finlandeses, talvez.

 

FLORA BENDER GARCIA é doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP
JOSÉ RUY LOZANO é autor de livros didáticos e professor de produção textual do Instituto Sidarta

[Transcrição integral de artigo publicado pelo jornal “Folha de S. Paulo” (Brasil) em 28.01.16. Os destaques e sublinhados são meus.]

[Imagem (recorte) de: revista Veja]

A Wikipédjia lusôfuna

Wikipedia República Federativa do Brasil
wikipediawaldirA chamada “Wikipédia Lusófona” já não é mistério nenhum: “lusófona” na capa, brasileira no conteúdo.

Com a aquiescência passiva de um ou outro mas, principalmente, com a colaboração activa de meia dúzia de portugueses, aquela espécie de enciclopédia virtual não passa, hoje em dia, de mero instrumento de difusão da Cultura brasileira e de simples máquina de propaganda do AO90. Máquina essa que, por conseguinte, (lhes) serve como dispositivo de intoxicação acordista.

Não era assim, de todo: durante alguns anos, desde a fundação da plataforma Wikipedia, coexistiram nela, sem qualquer problema, as duas versões normais: PT e PT-BR.

Então, afinal, como sucedeu a endlösung  da Wikipedia em Português-padrão?

Bem, a “solução final” foi decidida por um enorme universo de… 22 pessoas. Na imagem aqui ao lado estão os resultados de uma “votação” que determinou a extinção sumária do Português de Portugal na “Wikipédia Lusófona”; na citação em baixo está o respectivo relatório de extermínio.

No final, contabilizámos 17 opiniões favoráveis (incluindo as de três usuários que tinham votado contra a primeira proposta), quatro neutros e um voto contra. Apesar de não se ter conseguido a tão almejada unanimidade (possivelmente uma utopia, considerando o caráter controverso do tema), este resultado espelha uma muito maior convergência de opiniões do que o da primeira consulta.

Votação encerrada: Adoção faseada do Acordo Ortográfico na WP
Período de votação: 16 de agosto – 15 de setembro
A FAVOR: 17 — CONTRA: 1 — CONCLUSÃO: APROVADO

Porque aconteceu semelhante desgraça? Quando foram removidas todas as marcas distintivas da nossa ortografia? Desde quando começaram a ser demolidas e substituídas por conteúdos brasileiros as entradas respeitantes à Cultura portuguesa?

Vamos por partes. O “Livro de Estilo” daquela coisa reza assim:

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‘Os poderes do Maranhão’

Há ainda quem ponha em causa o carácter estrita e exclusivamente político do “acordo ortográfico”. Devido a este estranho fenómeno de renitente cepticismo em relação a tão espectacularmente flagrante evidência, continuamos a tropeçar amiúde em textos sobre as “incongruências” técnicas e as “inconsistências” ortográficas do dito “acordo”; pura perda de tempo (e feitio), conforme não me tenho cansado de repetir há já longos anos.

Com a devida vénia ao autor, reproduzo seguidamente um artigo, incluindo duas fotografias, que não apenas condensa em pouco tempo (e espaço) os factos históricos exactos,  como demonstra — sem hesitações, opiniões ou outras complicações — que o AO90 é política, todo política e nada mais do que política. Ou, para usar a “carinhosa” designação popular que adoptei, pulhítica.

 

RibamarCorrea_Maranhao

Especial: O dia em que Sarney liderou seis presidentes e transformou São Luís em centro mundial da lusofonia

presidentes-lusófonos_Maranhao_1Sarney (ao centro) na recepciona os seus colegas dos países de íngua portuguesa: Lopo Nascimento (representante de Angola), “Nino” Vieira (Guiné-Bissau), Mário Soares (Portugal), Aristides Pereira (Cabo Verde), Joaquim Chissano (Moçambique) e Manoel Costa Pinto (São Tomé e Príncipe)

O dia 31 de dezembro de 2015 entrou para a História dos sete países lusófonos como a data em que o acordo para a unificação Língua Portuguesa, com a eliminação das diferenças ortográficas, entrou em vigor para valer, abrindo assim caminhos para uma aproximação cultural entre os povos que falam o idioma luso, criando, portanto, meios para um processo de integração politica e econômica. Considerada a mais importante iniciativa desde que as guerras por meio das quais Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe se libertaram das amarras coloniais portuguesas e também desde que Portugal derrubou em 1974, com a histórica Revolução dos Cravos, a ditadura salazarista, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa nasceu, de fato, no dia 2 de novembro de 1989, data em que, sob a liderança de José Sarney, então presidente do Brasil, São Luís se transformou, durante 48 horas, no coração da comunidade de Língua Portuguesa em todo mundo, na qual o português era falado por 180 milhões de pessoas. A Capital do Maranhão sediou o Encontro de Chefes de Estado e de Governo dos Países de Língua Portuguesa: José Sarney (Brasil), Mário Soares (Portugal), Joaquim Chissano (Moçambique), Aristides Pereira (Cabo Verde), João Bernardo “Nino” Vieira (Guiné-Bissau), Manoel Costa Pinto (São Tomé e Príncipe) e o ministro da Cultura de Angola, Lopo Nascimento, que representou o presidente José Eduardo Santos. Desse encontro nasceu Instituto Internacional de Língua Portuguesa, entidade que a partir de então organizou todos os esforços que resultaram na construção do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa, editado em 2009 e que, após seis anos de adaptação, ganhou forma definitiva há exatos 16 dias.

presidentes-lusófonosMaranhao_2Presidentes reunidos no Palácio dos Leões durante o encontro que fez história

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Tão subtil como uma marretada na cabeça

inqueritoacordistaFBNovo Acordo Ortográfico

A aplicação do novo acordo ortográfico em Portugal provocou críticas e um certo desagrado na opinião pública.
A insistência na adjectivação (“novo acordo”, “novas regras”) com conotações positivas (novidade, moderno, etc.), quanto a uma coisa com mais de 25 anos, indicia uma postura claramente favorável à dita “novidade”. Quando o jovem autor introduz o “inquérito” referindo não o AO90 no seu todo mas apenas a sua “aplicação”, isto implica um nexo de causalidade nada subtil: o “acordo” não levanta qualquer problema, só “a aplicação” do dito é que, na opinião de apenas alguns “críticos”, “provocou um certo desagrado”. Nem o tempo verbal (“provocou”, no Pretérito) é casual: pois claro, se “provocou” é porque já não provoca, aquilo afinal é, por conseguinte,  uma maravilha.

Estes pressupostos, logo à cabeça, bastariam para detectar de imediato as intenções subjacentes ao “inquérito”: proselitismo, propaganda, intoxicação acordista. Mas se ainda assim subsistissem dúvidas, temos bem pior na forma enviesada como as perguntas são formuladas.

Como avalia o seu conhecimento das novas regras impostas pelo acordo ortográfico?
Aparentemente, a expressão “regras impostas” conteria alguma conotação negativa. Porém, a construção da pergunta, no seu todo, demonstra a intenção inversa: “o seu conhecimento” implica necessariamente que este existe e que, portanto, é natural ter-se conhecimento de “regras” (absurdas) que são afinal uma simples inerência; logo, essas “regras” são “impostas” e… muito bem impostas.

Como avalia o seu interesse pelo novo acordo?
Ou seja, presume-se — mesmo que a avaliação desse “interesse” seja zero — que algum “interesse” aquilo terá. Aliás, se existe “interesse”, mesmo que pouco, não faz sentido que seja interesse nenhum. Portanto, colocada a questão nestes termos, tenta-se fazer com que até um respondente anti-acordista possa “avaliar o seu interesse” com pelo menos “1” e não “0”.

Sentiu dificuldades ao adaptar-se às novas regras?
Note-se, de novo, o Pretérito: “sentiu”, ou seja, isso é passado, já lá vai e afinal aquilo só tinha umas “dificuldades”, coisa pouca. Portanto, a formulação “ao adaptar-se” pretende significar que, “evidentemente”, o respondente já se adaptou. A repetição obsessiva do substantivo “regras” (que não existem, de facto) pretende conferir um carácter técnico (ortográfico) a algo que não passa de uma golpada exclusivamente política.

Concorda com a aplicação do novo acordo ortográfico?
Mais uma vez, a “pergunta” implica não apenas a resposta pretendida pelo autor do “inquérito” (“sim”, evidentemente) como, ainda por cima, visa emparedar mentalmente quem responde: pode até não concordar com a “aplicação” mas não há alternativa a essa mesma aplicação. Aliás, o respondente julgará, por simples reflexo mecânico, que a “pergunta” se refere à forma como a aplicação do AO90 “foi feita” (outra ideia induzida) e não se foi ou não foi feita.

Continua a escrever como fazia antes do acordo?
Outra forma de impingir a ideia de que o que é “novo” é bom porque o contrário de “novo” é “velho” e, portanto, segundo o processo de infantilização em curso, tudo o que é “velho” é “mau”. A “pergunta” contém esta infantil dicotomia usando uma barreira mental fictícia: há um “antes”, velho, antigo, caduco, reaccionário, o que se opõe ao “depois” ou ao “hoje” que é por inerência jovem, moderno, progressista. E induz, de novo, uma “ideia” de inevitabilidade, de facto consumado. Como brinde extra, insinua ainda que só um mentecapto poderá responder “sim”; o jovem autor do “inquérito” deve ter apagado a parte final da pergunta, para não dar muita “bandeira”: continua a escrever como fazia antes do acordo, seu burro?

O novo acordo veio afetar a língua portuguesa
Quanto à horrível calinada acordista, nem vou comentar. O “inquérito” foi redigido em acordês, ponto. Mas esta “pergunta” não tem, como as anteriores, resposta por pontuação de zero a cinco nem por escolha simples entre “sim” ou “não”; neste caso, as opções são “positivamente” ou “negativamente”. Não havendo a opção “insuportavelmente” (ou a opção “o acordo não existe”, vá), é impossível responder ao jovem.

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