Tripas à moda do Rio
Algumas pessoas, especialmente entre o Porto e Valongo (mais umas quantas simpáticas localidades ali à volta), conhecem este indivíduo da pantalha televisiva, em especial por ter figurado num defunto programa especializado em maledicência (‘A Noite da Má-Língua’) e numa outra tertúlia mais virada para o pontapé na chincha. Tem ainda no curriculum, abrilhantando a sua condição de figura pública, o facto de pertencer à Confraria das Tripas, essa prestigiosa e vetusta instituição da Cultura pátria cuja matéria (as tripas propriamente ditas) é um elemento essencial da História de Portugal, d’aquém e d’além-mar, em especial da parte do além, está visto, pois que foi à custa das tripas que Portugal deu novos mundos ao mundo e espalhou a Língua portuguesa por tudo quanto é canto, etc.
Não se trata contudo agora da parte curricular ou das viscerais confrarias do senhor, nada de actividades empresariais na florescente área da organização de eventos, ou assim. Outrossim, porém, detenhamo-nos em pormenores a seu (dele) ver irrelevantes como sejam as desprezíveis normas que regulam (ou não, para o mesmo senhor é igual) a chamada “ortografia”. Não é de todo caso único, ainda que a bizarria no caso vertente escape a qualquer tentativa de entendimento, e se calhar até há quem conheça outros exemplos quejandos de tanto-se-lhe-dá-como-se-lhe-deu no que à escrita diz respeito. Segundo preceitua este, e há-de haver mais com certeza, é facílimo, tudo se resume a carregar pela boca e puxar o gatilho, cá vai disto, pum, sai pela mesma boca por onde entraram bolinhas de chumbo e areia uma descarga textual catita, explosiva; ou seja, se bem entendi, isto depois da descoberta da pólvora é uma brincadeira de meninos, carrega-se o arcabuz (ora renomeado “conversor ortográfico”) com chumbadas em Português, este é detonado pela pólvora (o “acordo ortográfico”) quando se prime o gatilho (tecla “enter”) e sai pelo outro lado um tirinho em acordês.
Foi o que “aprendi” no textículo do senhor, salvo seja. Mas devo ter percebido mal, só pode.
Não poderia, no entanto, privar os dois ou três leitores deste incógnito — porém, jeitoso, porque todo virado para a inovação — repositório virtual de tão suculento pitéu. E não, não me refiro às tripas.
Uma conversa acordada
Manuel Serrão
“Jornal de Notícias”, 30.01.19Esta semana, em conversa acordada com um amigo escritor, que por acaso também tem presença frequente na Imprensa nacional, demos por nós a discutir a diferença que tem existido entre quem se deixa regular pelas novas regras do Acordo Ortográfico e quem insiste em continuar a mover-se no universo da agora chamada antiga ortografia.
Também aqui no JN existem alguns textos e crónicas que no seu final advertem os seus leitores de que o autor escreveu segundo essa dita antiga ortografia.Lembro-me que na altura em que o Acordo Ortográfico entrou em vigor também alguém do JN me ligou, muito simpático, a perguntar qual seria a minha opção a partir de então, entre escrever respeitando o novo acordo ou usar da prerrogativa de continuar a escrever como sempre tinha escrito. Recordo-me que na altura a minha posição foi muito simples e por isso a minha decisão muito rápida, mesmo imediata. Perguntei ao meu interlocutor do JN o que é que o jornal, a sua Administração ou os seus directores tinham decidido fazer e tendo-me sido respondido que o jornal iria naturalmente seguir o acordo aprovado, eu limitei-me a dizer que então a minha crónica deveria alinhar, também naturalmente, com esta decisão. Nessa altura não me senti minimamente “violentado” com a questão, como não me senti de forma alguma pressionado para alinhar com a decisão geral editorial. Mas também não me senti impelido a deixar de fazer, pensar ou escrever diferente do que sempre tinha feito e aprendido ao longo da minha formação escolar.
Nesta conversa que referi acima com o tal escritor meu amigo (por sinal lisboeta) chegamos a uma conclusão que nos parece que ainda torna este caso mais límpido, a questão da advertência da conformidade ou não com o Acordo Ortográfico menos relevante e a prática que tem sido seguida até um bocadinho ridícula. Ora vamos lá ver. Uma coisa é escrever e outra, diferente, é publicar. Na minha relação com o JN, eu limito-me a escrever como acontecerá nas relações similares entre os outros cronistas e os órgãos de Comunicação Social para onde escrevem. Há uma divisão clara de tarefas: esta crónica, como as anteriores e as próximas, sou eu que as escrevo e o JN que as publica. Nunca se deu o caso, e tenho a certeza que nunca se dará no futuro, de que seja o jornal a escrever e eu a publicar. Assim sendo, aquilo que eu sempre fiz e continuo a fazer é escrever segundo a agora antiga ortografia, mas que para mim é a minha ortografia de sempre. O que o jornal faz é, recebido o meu artigo, a conversão para a nova ortografia de acordo com a decisão que tomou de respeitar o Acordo Ortográfico, publicando-a depois nesses termos. Isto quer dizer que faz pouco sentido para mim esta frase que vejo algures dizendo que o cronista escreve segundo a antiga ortografia, que é o que eu também sempre faço. Eventualmente, embora isso me pareça de certa forma desnecessário, haveria que acautelar os leitores, lembrando que o referido texto não é publicado de acordo com as novas regras porque o autor assim prefere.
Resta-me acrescentar que percebendo eu perfeitamente que os autores, como eu, gostem de escrever segundo a ortografia que aprenderam, já me custa muito mais perceber que insistam em que a publicação seja feita nesses mesmos termos, sendo que até podem estar a cometer um erro na comunicação com leitores mais jovens, para quem a nova ortografia é também para eles a ortografia de sempre.*Empresário
[Transcrição integral de “Uma conversa acordada”, “JN”, 30.01.19. Na transcrição da prosa foi feita, nos exactos termos indicados pelo autor, a conversão para a ortografia portuguesa de acordo com a decisão que o autor da transcrição tomou de não respeitar o Acordo Ortográfico, publicando-a depois nesses termos.]