Romper a cortina de silêncio

 

«From Stettin in the Baltic to Trieste in the Adriatic, an iron curtain has descended across the Continent.» Winston Churchill, 1946

 

No passado dia 22 de Fevereiro foi votado no Parlamento um Projecto de Resolução pelo recesso (denúncia unilateral, retirada) de Portugal do “Acordo Ortográfico”.

Seguiram-se, durante uns dias, algumas repercussões, mas a verdade — a triste realidade — é que desde então nada mais se passou: parafraseando a célebre frase de Churchill, uma cortina de silêncio abateu-se (pesada, lúgubre, sinistramente) sobre a Causa anti-AO90. Dir-se-ia mesmo ou, por outra, dirão alguns, a avaliar pela quase absoluta ausência de conteúdos, artigos ou notícias ao longo do último mês, que foi mesmo desta, pronto, acabou-se a resistência, terminou a luta. Ora, isto é um absurdo.

Poderá bem suceder que a qualquer momento, hoje mesmo ou amanhã ou num dos próximos dias, alguém se lembre de ao menos publicar alguma coisa que reavive o assunto. Ou até, quem sabe, que de repente surja algures alguma solução milagrosa que estaria entretanto a ser preparada nos bastidores… o que explicaria tão longo quanto confrangedor silêncio.

Esperemos que assim seja, de facto, e que o retomar das hostilidades — isto é, a reactivação da luta contra o acordês — esteja para breve, porque, escusado será dizer, esta lamentável situação já começa a tresandar a… rendição!

Longe vá o agoiro, evidentemente. Aguardemos com esperança e mais do que justificada ansiedade que esta desgraçada situação de total mutismo e geral paralisia tenha sido apenas um acesso passageiro de letargia, um sono estranho e inexplicavelmente prolongado.

De qualquer forma, essa cortina de silêncio — a toda a altura e, medida até hoje, com um mês de comprimento — já acarretou enormes custos; custos estes que poderão tornar-se devastadores, a curto prazo, em termos de mobilização da opinião pública, de dinâmica de acções subsequentes e de credibilidade quanto a qualquer iniciativa futura.

Tão esmagador silêncio é tanto mais estranho quanto (e quando) ocorre precisamente logo após a ocasião em que estivemos mais perto, desde o início da luta, já lá vai uma década, de uma solução para o “acordo ortográfico”. É verdade que a iniciativa parlamentar de 21 de Fevereiro foi uma oportunidade perdida, mas também é verdade que essa mesma iniciativa veio criar, pela primeira (e única) vez desde 2008, as condições políticas necessárias para a liquidação do AO90 — sem mais, sem “revisão”, sem qualquer outra aldrabice.

Os deputados anti-acordistas (dois terços do total, como sucede na população em geral, que eles representam) devem com certeza delinear o projecto mais adequado, mas permita-se-me reiterar que em qualquer dos casos o dito não deverá andar muito longe de uma destas três vias:

  1. A apresentação, por parte de um único Deputado ou de vários, de um projecto de lei de conteúdo e objectivos similares aos da nossa ILC, conforme previsto na alínea b) do Art.º 156.º da CRP. Isto evidentemente, desde que fique garantida a liberdade de voto, ou seja, que em sede de reunião de líderes de grupos parlamentares se convencione a abolição da “disciplina de voto” neste projecto de lei em concreto.
  2. A constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (Art.º 178.º – 4 CRP), requerida por 46 Deputados, com a finalidade de investigar todos os procedimentos do processo legislativo que conduziu à aprovação da RAR 35/2008 (II Protocolo Modificativo) e tendo por (óbvia) consequência a apresentação de uma iniciativa legislativa em conformidade.
  3. A apresentação de um pedido de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade da RAR 35/2008, do II Protocolo Modificativo e/ou do próprio AO90, por parte de (no mínimo) 23 deputados de todas ou de pelo menos duas bancadas parlamentares. (Art.º 281.º – f) CRP).

Ora, assim sendo, apenas há que proceder a alguma alteração de pormenor quanto ao enquadramento técnico em termos constitucionais.

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“Uma lógica puramente financeira”

Pode dizer-se que A Misericórdia dos Mercados é onde essa afirmação de vida mais existe?

Esse livro tem que ver com uma revolta com determinado discurso que nos foi imposto e tendia a negar aquilo que é mais humano em nós: a capacidade de transformar e a dignidade de quem trabalha. O livro revolta-se contra uma ordem do mundo que assenta na lógica puramente financeira, daí ser vincadamente de protesto, apesar de igualmente melancólico porque manifesta a desilusão com uma ordem política e económica que parece negar o que há de mais importante na humanidade.

Luís Filipe Castro Mendes, 10 de Março de 2018

Olhe que não, senhor ministro…

Que um homem de cultura venha reduzir a questão ortográfica a uma “luta de religiões” é o que realmente indigna.

Nuno Pacheco
“Público”, 22.03.18

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Deu-se o ministro da Cultura ao trabalho, em entrevista recente (Diário de Notícias, 10 de Março), de falar do acordo ortográfico (AO). Não o fez de forma clara nem convicta, fê-lo contrariado, como se estivesse a tomar um remédio obrigatório mas de difícil ingestão. E o que disse? Que o acordo não é perfeito. Ora isto transporta a mesma novidade do que anunciar, em pleno século XXI, que a Terra é redonda. Mesmo assim, não sendo perfeito, segue-o. Porquê? Ele explica (eis, na íntegra, o parágrafo onde o faz): “Não considero que este Acordo Ortográfico seja perfeito e penso que há coisas suscetíveis [sic] de melhoria, mas sendo o que se utiliza oficialmente achei que seria hipócrita não o fazer. Isto sem criticar outras pessoas, até porque não tenho ideias tão fortes sobre ortografia como elas. O acordo não é o melhor possível mas está vigente e segui-o para horror e espanto de muitos amigos. Não porque lhe tenha um grande amor, mas porque para mim a ortografia é uma convenção e não considero que a anterior seja a maior das maravilhas. Tudo se pode aperfeiçoar, é a minha opinião. Enquanto estiver em vigor vou segui-lo e lamento os meus amigos que consideram isto uma traição. Há como que uma luta de religiões em torno do acordo, só que eu não tenho religião. Acredito que esta opção vá ser muito criticada, mas é assim.” Convém explicar que tal justificação se deve, não a comunicados do seu ministério ou a qualquer discurso oficial, mas a um livro de poesia dele próprio. Nem sequer um livro novo, escrito agora, mas uma colectânea de 800 páginas onde, segundo o entrevistador, citando o ministro, “os poemas estão tal como apareceram na altura em que foram publicados.” Bom, “tal como apareceram” não é verdade, agora estão filtrados pelo acordo ortográfico.

O que mais espanta, aqui, não é o facto de o ministro-poeta (ou o poeta-ministro, o que vai dar ao mesmo) usar a ortografia que entende. É sobretudo a displicência e o pálido relativismo com que encara esse facto. Não considera o acordo perfeito, mas usa-o; não lhe tem grande amor, mas, caramba, afinal a ortografia é uma convenção e tanto se lhe dá; não tem ideias fortes sobre ortografia, mas considera-se capaz de dizer (com base em quê?) que a anterior convenção não é a maior das maravilhas; lamenta o horror e espanto dos amigos, diz até que alguns o acusam de traição, mas continuará a seguir o AO. Porquê? Porque sim. Não haverá, da parte do ministro-poeta, algo sólido? Um objectivo patriótico, uma miragem utópica? Nada, apenas qualquer coisa como um triste “não lhe tenho grande amor mas o casamento mantém-se porque me colaram a aliança ao dedo.” Mas há pior. Sobretudo quando ele sugere que isto não passará de “uma luta de religiões”, uma luta na qual ele, que nem tem religião, não cabe nem se imiscui. Extraordinário. A levar a sério as suas palavras, uma “religião” pô-lo a escrever assim e ele não se importa; outra “religião” aponta-lhe o dedo e grita “traidor”; e ele, que até nem tem religião, veste resignadamente a “farda” da primeira.

Temos aqui, portanto, um homem decidido. Resoluto. Com ideias firmes. Um ministro verdadeiramente poético ou um poeta indubitavelmente ministeriável. Um homem que até diz: “Tudo se pode aperfeiçoar, é a minha opinião.” É verdade. Podemos começar pela política do seu ministério, e isto já sem ortografias nenhumas; ou pelo comportamento de muitos políticos, do Governo à oposição. Afinal, com tanta coisa lamentável, há muito por onde melhorar, aqui e em todo o planeta Terra. Mas se descermos ao chão inicial da ortografia, por onde este texto começou, a conversa do aperfeiçoamento é já insuportável. Há anos, mesmo há décadas, que se fala em aperfeiçoar o acordo ortográfico; mas tirando o voluntarioso (mas até agora sem consequências práticas) gesto da Academia das Ciências, nenhum responsável mexeu uma só palha para cumprir tal desiderato. Percebe-se: a maioria não sabe no que nos meteram, e por isso cala-se. Mas que um homem de cultura, poeta, com vários livros publicados e ainda por cima nomeado ministro, venha reduzir a uma “luta de religiões” aquilo que é, pelo contrário, uma causa de bases científicas, mais do que justificadas em milhares e milhares de páginas, em tratados, pareceres, artigos, abaixo-assinados, é o que realmente indigna. Por isso, senhor ministro, leia e informe-se. Se para isso tiver coragem.

“Público”, 22.03.18. “Links” meus. Imagem de topo de: Facetoons.

A língua deles

Diplomacia brasileira realça a força da língua

Mário Cohen
“Jornal de Angola”, 14 de Março, 2018

O Centro Cultural Brasil-Angola (CCBA) promove de Maio a Junho, em Luanda, uma exposição internacional itinerante denominada “Nossa Língua Portuguesa”.

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O acervo vem do Museu de Língua Portuguesa, criado em São Paulo, Brasil, com o objectivo de difundir a língua portuguesa, bem como recolher mais dados de falantes para enriquecer o museu situado na maior cidade de lusófona do Mundo.

O embaixador do Brasil acreditado em Angola, Paulino Franco de Carvalho Neto, ao presidir a conferência de imprensa, ontem, para apresentação da exposição, considerou a língua portuguesa como um dos mais importantes eixos de actuação da diplomacia brasileira.

Historicamente, disse, o Brasil tem contribuído para a difusão do idioma português, na sua variante brasileira, por meio da manutenção de uma extensa rede de centros culturais no exteriores, dos quais o Centro Cultural Brasil-Angola (CCBA).

Na óptica do diplomata, a exposição “Nossa Língua Portuguesa” constitui um convite à celebração do idioma que une para além das fronteiras “e que nos irmana numa comunidade de mais de 260 milhões de pessoas que, por meio dele, expressam a sua cultura, os seus sentimentos, a sua ciência e as suas crenças.”

Por sua vez, a directora do CCBA, Nídia Klein, referiu que o público vai encontrar do acervo conteúdos interactivos em formatos digitais, desde textos, fotografias e documentos que espelham a origem da língua portuguesa. A mostra inclui, também, painéis que vão ser com imagens várias, conteúdos audiovisuais que vão ser projectados numa tela.

Nídia Klein informou que a parte física da exposição tem como destaque material literário (livros) de autoria de escritores dos países falantes da língua portuguesa com maior referência internacional, entre angolanos, brasileiros, portugueses, cabo-verdianos e moçambicanos.

Uma das metas da exposição é mostrar o acervo aos países participantes, bem como receber contribuições que sirvam para enriquecer o conteúdo existente. “Assim, o Museu poderá representar de forma cada vez mais completa a diversidade e a riqueza da língua portuguesa dos falantes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)”.

A directora informou que um dos aspectos mais relevantes da exposição do Museu da Língua Portuguesa é a necessidade de sua adaptação a cada um dos quatro países africanos, em que a mostra vai ficar patente durante dois meses.

“É nossa intenção que se encontre o carácter pluricêntrico do idioma retratado e permitir o enriquecimento do acervo do Museu, que passará a representar de forma mais completa as diversas variantes da língua portuguesa”, disse Nídia Klein.

Para que as contribuições de Angola sejam efectivas o projecto tem a contribuição do escritor José Luís Mendonça, como curador local. Também jornalista, José Luís Mendonça vai assumir o tema “Como falar da cultura angolana”, principalmente para o enriquecimento do acervo do museu.

A produção da exposição e a realização de uma ampla gama de eventos culturais locais, complementares à exposição, também constam do programa, incluindo a formação de vigilantes angolanos para as actividades referentes à produção artística.

José Luís Mendonça disse tratar-se de um desafio para o país, assim como tem em agenda várias contribuições que julga importantes para enriquecer o evento de cariz internacional.

Para a actividade, o escritor preparou diversos trabalhos sobre a evolução da língua portuguesa desde a sua origem, a inscrição na pedra de Ielala, feita pelos navegadores portugueses, em 1486, a Carta do Rei do Congo, Mbemba a Nzinga (Dom Afonso), ao Papa, escrita em 1500, o Dicionário de Línguas Nacionais-Português, assim como a Bíblias em Línguas Nacionais e provérbios de cada uma das línguas nacionais.

Para o Espaço Leitura, José Luís Mendonça prepara a obra “Trilogia de contos”, a obra “Luuanda”, de Luandino Vieira, “O Pano Preto da Velha Mabunda”, de Jacinto de Lemos, “Sagrada Esperança”, de Agostinho Neto, “Poemas”, de Viriato da Cruz, entre outras obras. Outros atractivos são “Varanda de Leitura”, um espaço aberto ao público, com a participação espontânea dos visitantes e pessoas interessadas em fazer leitura de vários trechos narrativos.

Source: Diplomacia brasileira realça a força da língua | Cultura | Jornal de Angola – Online

Imagem: Por VictorcoutoObra do próprio, Domínio público, Hiperligação

“Um elefante sentado no meio da sala”

Aquilo que sucedeu no passado dia 22 de Fevereiro de 2018 foi de facto uma oportunidade perdida e culminou no triste, deprimente resultado que puderam testemunhar os espectadores da ARTV (umas dezenas, certamente) e  todas as três pessoas então presentes nas galerias do Parlamento.

Porém, à excepção dos mais do que previsíveis resultados — dada a confusão gerada entre uma petição a brincar e um Projecto de Resolução a sério –, o que se passou naquela sessão parlamentar foi extremamente positivo.

Sem atender aos (aparentemente desastrosos) resultados, enquadremos o sucedido  com alguns antecedentes.

Junho de 2012

Havia, portanto, que ir procurando  alternativas.

Por exemplo, sugerir aos deputados que tinham votado contra a RAR 35/2008 que avançassem eles mesmos com uma resolução ou outra iniciativa parlamentar do mesmo teor.

Para os que votaram contra a RAR 35/2008 poderem avançar “internamente” com uma iniciativa (ou resolução) própria teriam de ser pelo menos 23 (10% do total dos assentos parlamentares) e não apenas 4, que foram quantos votaram de facto contra a dita RAR. Ainda que pudessem contar com os 17 deputados que se abstiveram naquela mesma votação, seriam 21 no total: não era suficiente. Acresce que seria muito difícil os deputados do PCP, o único partido que então se absteve em bloco, aliarem-se numa iniciativa legislativa aos seus mais férreos adversários políticos, no mesmo hemiciclo onde todos os dias se confrontam. E acresce ainda que não é lá muito fácil ao povo sequer chegar “à fala” com os seus representantes no Parlamento, quanto mais convidar uns quantos deles, de vários partidos, para conversar placidamente à volta de uma mesa.

Mas foi isto mesmo o que efectivamente tentámos. Já tínhamos encetado contactos nesse sentido, tendo como alvo preferencial alguns dos deputados de diferentes “bancadas” que tinham tomado posição pública contra o AO90.

Uma história (muito) mal contada [XIX]

Pois então vejamos o que dizem agora, quase cinco anos volvidos sobre aquilo que na altura parecia impossível, os representantes de duas das (quatro) bancadas parlamentares que aprovaram a entrada em vigor do AO90.

Fevereiro de 2018

«Muito a discutir, portanto, e por isso propusemos a criação de um Grupo de Trabalho (actualmente em funcionamento no âmbito da Comissão de Cultura) que nos permitirá, no curto prazo, dispor de um ponto de situação pormenorizado sobre os efeitos da aplicação do acordo e, portanto, avaliações ponderadas, sustentadas por argumentos que no essencial não poderão deixar de ser de ordem técnica e científica. E é também por isso que achamos extemporâneo o Projecto de Resolução agora apresentado pelo Partido Comunista Português. Para concluir, não abandonamos o entendimento de que se justificam todos os esforços de envolvimento solidário dos países que connosco partilham esta Língua comum, no sentido da sua defesa e valorização, não desconhecemos o que se nos exige a todos de ponderação e de responsabilidade numa matéria a vários níveis sensível. Mas também não queremos, como tem sido a posição do Governo e a posição do Partido Socialista, fazer de conta que não há nada a discutir, quando, na verdade, está um elefante sentado no meio da sala.»

 

«Este, a nosso ver é um trabalho que é sério, que tem sido sério, sobre um assunto que é sério. Ouvir pessoas, entidades, instituições, pontos de vista, o que foi exactamente o que falhou antes das assinaturas do Tratado e dos Protocolos. Repito: neste momento, aguardamos que esse Grupo de Trabalho — que ouviu essas entidades, que ouviu essas pessoas — possa concluir o seu trabalho e elaborar um relatório final, de onde possamos não só retirar as melhores conclusões sobre o que fazer com este acordo, que parece manifestamente um desacordo, mas, ao mesmo tempo, das formas como, defendendo o interesse nacional, pugnando pelas relações internacionais de Portugal, pela palavra dada por Portugal, poder também defender os interesses e a prática de todos os portugueses, que é manifestamente contrária a este acordo nestes termos.»

Ou seja, o Projecto de Resolução do PCP bem poderia ter sido algo como o que — recuemos de novo os mesmos cinco anos e até ao mesmo ponto — já tinha sido “inventado”, isto é, aventado. 

Junho de 2012

A ideia não seria propriamente “convidar uns quantos deles, de vários partidos, para conversar placidamente à volta de uma mesa”, mas convocar o máximo possível de deputados para uma sessão (ou reunião) extraordinária, no próprio Palácio de S. Bento, em que seria ouvida uma delegação da ILC e enunciadas e discutidas entre todos as diversas alternativas de acção concreta.

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