Quéru u livru dji réclámáçáum, tá légáu?

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Já aqui abordámos esta questão (de tacho), mas não deixa de ser interessante, anedótica e “comovedora” a forma como os brasileiros se atiram a assuntos “linguísticos” no caso exclusivo de isso de alguma forma prejudicar os seus recém-adquiridos direitos de potência colonizadora.

Desta vez, também já cá faltava, os queixumes arranham o enxovalho político, o insulto de patrão mal servido que esbofeteia o criado com as luvas de pelica dobradas na mão do castigo. Chamam-nos, o que é para já mera bofetada indolente, “xenófobos” (em brasileiro, como em Espanhol, a designação varia mas pouco). Dizem que nós, portugueses, além de “xenofóbicos” somos do piorio, fazemos-lhes “ilegalidades” (o contrário de “légáu, viu”) e tratamos genericamente mal a brasileirada, coitadinha, ah, mas isto não fica assim, dizem e ameaçam eles, vai já de Itamaratchi em riste, vocês vão ver, seus tugazinhos, até comemos “cês”!

É curioso terem irrompido estes pruridos “linguísticos” apenas recentemente, depois de Portugal ter “adotado” politicamente a língua brasileira (AO90). Mas, ao que já se vai vendo, a vingança está agora a auto-coligir-se, ui, que medo, lá vem retaliação. De facto, onde já se viu, mas o que é isto, indígenas a revoltar-se contra a anexação estrangeira, invasão brutal e ignorante bombardeio, ainda por cima? Como?!

E quanto a nós outros, tugazinhos: ah, isto agora é assim, meia bola e força, até analfabetos temos de gramar, salvo seja? Ah, então está bem, dizem alguns, os tais tugazinhos, gente pequenina cujo modo de vida é bajular.

Uma outra curiosidade, espécie de sub-produto desta telenovela, é a própria diferença (radical) entre as duas designações: em qualquer simples busca, os resultados da (mesma) profissão em Português (“terapia da fala”) e em língua brasileira (“fonoaudiologia“) devolvem resultados evidentemente estanques, separados, num critério  exclusivamente portugueses e no outro só brasileiros. Ora, esta pesquisa simples não deixa de ser interessante (e rara), visto que uma das tremendas aldrabices do AO90 foi a adulteração das profissões, artes, especialidades: o que era português desaparece agora em qualquer pesquisa, passando a figurar nos primeiros lugares das buscas exclusivamente empresas, profissionais, materiais brasileiros; seja o que for que se procure agora, à conta do AO90 passou tudo, “milagrosamente”, a ser brasileiro. Uma golpada “muintu légáu”.

[Nota: o tom “brincalhão” desta “piquena” diatribe, aliás na sequência das imediatamente anteriores, é deliberado: o assunto (a neo-colonização) é de tal forma deprimente (ou nojento) e implica tantas e tão maçadoras considerações (técnicas, históricas, culturais e até psiquiátricas), que utilizar um timbre curial e sério seria algo como um “piqueno” suicídio intelectual. A escolha entre a escrita com uma ruga profunda na testa ou um “piqueno” sorriso na boca é fácil e resulta da escolha entre dois males: a roubalheira alegre ou a alegre roubalheira.]

Fonoaudiólogos brasileiros são impedidos de trabalhar em Portugal por não dominar idioma

Por
br.sputniknews.com, 24.11.20

Fonoaudiólogos vindos do Brasil não podem exercer a profissão em Portugal sob a justificativa de não falarem… português. Essa é a resposta padrão apresentada pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) para negar pedidos de cédula profissional a brasileiros.

Um abaixo-assinado virtual com o objetivo de que o processo da regularização de fonoaudiólogos brasileiros em Portugal ocorra de forma legítima e transparente estima que haja mais de dois mil profissionais “vítimas dessa ação irregular, de cunho ilegal e xenofóbico, que se caracteriza pelo preconceito linguístico“. Segundo o professor português António Veira, terapeuta da fala (nomenclatura dada aos fonoaudiólogos em Portugal), “há de 2.200 a 2.500 pedidos de fonoaudiólogos para aquisição da [cédula de] terapia da fala em Portugal e que estão quase todos a ser indeferidos”.

A Sputnik Brasil conversou com três fonoaudiólogas brasileiras que tiveram o pedido de cédula profissional indeferido pela ACSS após quase um ano de espera pela resposta. O indeferimento, nesses casos, apresenta a justificativa idêntica de que, “durante a prova linguística, a requerente demonstrou não dominar o português europeu nos diferentes domínios semântico, morfossintático, fonético-fonológico, quer na vertente oral quer na vertente escrita“.

A “prova” em questão se trata de uma entrevista presencial de meia hora e uma redação, aplicadas a candidatos brasileiros a partir de 2019, mas sem prazo para resultados. Até então, a ACSS exigia apenas o envio de “declaração original emitida por um terapeuta da fala (devidamente autorizado a exercer em Portugal) em como não possui qualquer perturbação da fala e ou da voz e domina a língua portuguesa tal como é falada ou escrita.

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Cares senhores/as deputades…

Tinha de ser: no âmbito de “patrióticas” e alucinadas experiências “linguísticas”, o Brasil vai a choute com a aparentemente urgente empreitada de demolição sistemática da sua língua. Continuam também, como de costume, a chamar “portuguesa” à cacofonia (e cacografia) da língua brasileira, cujas cada vez mais vagas e remotas parecenças com o Português-padrão são de facto folclóricas e politicamente dementes, tão imenso é o fosso que as separa.

Este modismo politicamente correcto da língua “assexuada” não deixa de ser algo cómica, hilariante por vezes, e ao que parece, em função do processo de colonização em curso, ensombra já a língua brasileira impingida a Portugal (e PALOP) pelo AO90. No fundo, esta Novilíngua que não é “menino” nem “menina” chegará quiçá aos antros acordistas do nosso país, a Assembleia de República, e assim, tornando ainda mais anedótica a sua execrável brasileirada de tribunos (“tribunes”) obedientes/os/as, carneirinhes habituades a proferir barbaridades/os/as à velocidade/o/a de/a/o luz/lamparina/pisca-pisca.

Errata: nos dois talos de folha-de-couve que se seguem, onde se lê “língua Portuguesa” leia-se língua brasileira.

 

Pais decidem se unir contra o “gênero neutro” em escolas

 

Henrique Gimenes
pleno.news – 23/11/2020

Grupo lançou abaixo-assinado contra a medida após colégio no RJ promover a mudança

Após um colégio do Rio de Janeiro decidir inovar e adotar o “terceiro gênero” dentro da instituição, um grupo de pais resolveu promover um abaixo-assinado contra a “neutralização de gênero” da Língua Portuguesa dentro da instituição de ensino.

O documento pede a “não mudança da norma culta da língua Portuguesa em documentos e comunicados oficiais das escolas” por entender a medida “como um movimento de ‘ideologia de gênero’”.

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5 STF retira da pauta ação sobre ideologia de gênero nas escolas

O abaixo assinado ressalta ainda que “discursos ideológicos e com viés partidário dentro das instituições escolares tradicionais e apartidárias promovem maior polarização e dividem a comunidade escolar e a sociedade como um todo”.

O abaixo assinado ressalta ainda que “discursos ideológicos e com viés partidário dentro das instituições escolares tradicionais e apartidárias promovem maior polarização e dividem a comunidade escolar e a sociedade como um todo”.

A petição já conta com mais de 2.380 assinaturas e pode ser vista aqui.

NEUTRALIZAÇÃO DE GÊNERO
Em um comunicado, o Colégio Franco-Brasileiro, do Rio de Janeiro, informou que a “neutralização de gênero” foi adotada devido ao “compromisso com a promoção do respeito à diversidade e da valorização das diferenças no ambiente escolar”.

No documento, o colégio explicou que a “neutralização de gênero gramatical consiste em um conjunto de operações linguísticas voltadas tanto ao enfrentamento do machismo e do sexismo no discurso, quanto à inclusão de pessoas não identificadas com o sistema binário de gênero.

Eles também citaram como exemplos a substituição de “queridos alunos por querides alunes”, já que a mudança “passa a incluir múltiplas identidades sob a marcação de gênero ‘e’”.

O colégio, no entanto, deixou claro que “essa iniciativa não configura, absolutamente, a obrigatoriedade da adoção de estratégias de neutralização do gênero” por parte dos alunos e professores, “até mesmo porque a normatividade linguística inerente à redação de documentos oficiais ainda configura certa restrição a esses usos”.

O que você acha dessa história de falar amigues bonites?… –

Reinaldo Polito
Colunista do UOL
24/11/2020
«A gramática é a arte de remover as dificuldades de uma língua; mas a alavanca não deve ser mais pesada que a carga…»
Rivarol

Não é de hoje que ouço falar nessa tendência de mudar a indicação de gênero na língua portuguesa. No começo, parecia ser algum tipo de brincadeira. Sugeriam que palavras terminadas em “o” para indicar masculino e feminino passassem a ser grafadas com “x” ou “@”. Quase caí de costas ao me deparar com um anúncio em uma das faculdades em que leciono: “Atenção alun@s”. Pensei – o assunto é sério mesmo.

Nessa época eu presidia a Academia Paulista de Educação, composta por reitores de grandes universidades, secretários estaduais e municipais de educação e profissionais envolvidos diretamente com o mundo educacional. Levantei essa questão em algumas de nossas reuniões, mas ninguém achou que valesse a pena discutir o tema. Nós nos enganamos, pois deveríamos ter debatido o assunto com mais profundidade.

De uns tempos para cá, tem ganhado força a ideia de que palavras femininas terminadas em “a” e palavras masculinas terminadas em “o” devessem ter a terminação em “e”. A maioria que não concorda quase sempre diz que isso é besteira, coisa de gente que não tem o que fazer. Lógico que o assunto não pode ser debatido nessa superficialidade, de forma tão rasa.

A opinião do professor Sérgio Nogueira

Há pouco tempo fiz uma live com o professor Sérgio Nogueira (está salva no meu instagram), um dos maiores estudiosos da língua portuguesa, e conversamos sobre essa questão. Ele deu uma explicação interessante. Disse que no latim, de onde vem a língua portuguesa, havia três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro.

Na língua portuguesa, o neutro acabou sendo absorvido pelo masculino, embora nos pronomes demonstrativos tenhamos este, esse e aquele que são masculinos; esta, essa e aquela que são femininos; e isto, isso e aquilo que são neutros. Afirma o professor Nogueira duvidar que “esse tal neutro” que estão querendo impor funcione. Isso porque a língua é um fenômeno natural. Não vem de fora para dentro, já que não se criam regras para que as pessoas falem corretamente. Nós é que criamos as regras a partir do bom uso.

Entrevista com a Dra. Edna M. B. Perrotti

Por causa dessa polêmica, resolvi entrevistar a professora Edna Maria Barian Perrotti, doutora em Linguística Aplicada ao Ensino da Língua, professora de Linguística e Redação em importantes universidades e autora de vários livros sobre a matéria de sua especialidade. Uma de suas obras, “Superdicas para escrever diferentes tipos de texto”, superou a marca dos 100 mil exemplares vendidos, e foi publicada com sucesso na Itália. Suas respostas nos dão bons subsídios para refletirmos a respeito desse tema.

É possível que regras impostas para a língua sejam adotadas?

As línguas são organismos vivos e naturais, portanto, passíveis de mudanças. Ao utilizá-las, seus falantes vão adquirindo novas palavras e abandonando outras, num processo natural, quase inconsciente e coletivo, sem que haja nenhuma imposição. As pessoas que hoje têm mais de 60 anos certamente se lembram das cartas comerciais em que era preciso usar o pronome de tratamento V.Sa. Hoje ninguém estranha receber uma carta de um banco, por exemplo, e ser chamado por você. E é claro: a mudança não ocorreu de um dia para o outro, nem foi feita por imposição.

Como a senhora avalia essa mudança para indicar o gênero na língua portuguesa?

Hoje está havendo sim um movimento, em nome da inclusão, para que a indicação de gênero seja mudada na língua portuguesa. Palavras femininas terminadas em -a e palavras masculinas terminadas em -o passariam a ter a terminação -e. E como se trata de uma matéria mais geral, nem vou entrar na questão de que a terminação o não é marca de masculino. O feminino e o plural é que são formas marcadas.

A senhora poderia explicar melhor?

Vou me ater ao movimento de inclusão que diz respeito à terminação das palavras referentes às pessoas do sexo feminino e do sexo masculino para que tenham um gênero neutro. Por este movimento, menino e menina teriam uma só terminação: menine, que seria caracterizada pelo adjetivo bonite. Só que, neste caso, seria preciso também mudar os artigos o(s) e a(s) para e(s)e menine bonite. Mas isso traria um grande problema de comunicação.

Haveria, então, só o gênero neutro?

Pois é, o gênero neutro não poderia abolir as formas de masculino e feminino, substituindo-os, mas sim deveria designar aquelas pessoas que tiveram outra opção que não o sexo masculino ou o sexo feminino. Haveria, então, na língua portuguesa, três marcas de gênero gramatical: o masculino, o feminino e o neutro, como ocorria no latim.

Há diferença do nosso uso e do latim?

Somos uma língua originada do latim, ou continuidade do latim, só que o latim, o clássico em especial, não fazia uso do artigo. Como, em português, o artigo é essencial, e é ele que determina o gênero gramatical (reforço: gênero gramatical, não gênero sexual), a substituição da tradicional marca de gênero masculino (-o) e feminino (-a) para (-e) ou (-x) (meninx bonitx) apenas na terminação das palavras, em nome de uma identidade inclusiva, caem por terra. Se for continuar a oposição o/a pelo artigo, não existirá neutralidade nenhuma.

Como a língua falada entra nessa história?

Essa é uma questão importante. Em primeiro lugar, porque a escrita é e sempre foi consequência da fala. E ninguém diz o menine é bonite ou a menine é bonite ou e menine bonite; nem formula a frase: médique, e farmacêutique, es terapeutes e e psicólogue estão em reunião; nem mesmo todes vão gostar deste suco.

Qual o outro ponto a ser considerado?

A segunda consideração é o fato de que é função do ARTIGO e não da terminação da palavra identificar o gênero gramatical em português. Senão, vejamos:

 

  • palavras terminadas em -a são geralmente antecedidas pelo artigo -a: a menina, a médica, a poeta, a engenheira, a garça, a criança, a vítima, a pessoa (não importa se as quatro últimas são do sexo feminino, do sexo masculino ou de outro sexo).
  • palavras com a mesma terminação -a são gramaticalmente masculinas se antecedidas pelo artigo -o: o psiquiatra, o astronauta, o psicopata, o planeta, o telefonema (vale lembrar: essas palavras são originadas do grego, não do latim).
  • palavras terminadas em -o são gramaticalmente masculinas quando antecedidas pelo artigo -o: o menino, o moço, o muro, o relatório, o médico.
  • palavras terminadas em -o (poucas) são gramaticalmente femininas quando antecedidas pelo artigo -a: a prodígio, a robô, a foto.
  • palavras terminadas em -e são gramaticalmente femininas quando antecedidas pelo artigo -a: a estudante, a principiante, a paciente, a superintendente.
  • palavras terminadas em -e são gramaticalmente masculinas quando antecedidas pelo artigo -o: o estudante, o principiante, o jacaré, o elefante, o cônjuge (esta serve tanto para homem quanto para mulher).
  • palavras com qualquer outra terminação dependerão do artigo para ser consideradas gramaticalmente femininas ou masculinas: o juiz, o/a aprendiz, a perdiz, o homem, o/a general (há também a generala), o/a major, o/a coronel.

A senhora acredita que esteja havendo algum equívoco nessa imposição?

Sim, pois se quem advoga a mudança está pensando numa identidade de gênero inclusiva é porque confunde gênero sexual (o homem/a mulher; o gato/a gata) com gênero gramatical, que serve para identificar não só pessoas ou animais de sexos diferentes, mas também seres inanimados, que não pertencem a nenhum gênero sexual (a casa, a roupa, o dia, o muro, o soluço, a noite, a rede, o pente).
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«Uma voz que não se ouve» [Nuno Miguel Guedes, “Macau Hoje”]

Carta manuscrita de um voluntário de recolha de assinaturas para a ILC contra o AO90. Caligrafia espantosa!

A caligrafia, como a memória, passaram em certa altura a ser consideradas coisas “anti-pedagógicas”. Às crianças portuguesas, algures num passado recente, foi impingida a política oficial da “escola” lúdica, transformando aquelas “vetustas” e “reaccionárias” actividades escolares comuns no Ensino Básico (então chamado “Primário”) em letra morta… literalmente.

Trata-se, portanto, de uma já antiga lacuna no nosso “sistema de Ensino”, que, a par com a História da Língua, poderia muito bem e deveria ainda mais preencher o enorme buraco, a cratera de (re)conhecimento da nossa identidade colectiva e de uma parte nada desprezível do sentir colectivo, por oposição ao hedonismo obsessivo que em Portugal brutalmente se apossou de todas as estruturas de Poder político. Ninguém se pronunciou (ou foi sequer consultado) sobre a extinção administrativa da Caligrafia.

E, contudo, ela move-se.

Com a nossa letra

Nuno Miguel Guedes
“Hoje Macau”, 18.11.20

 

A cidade ficou deserta, outra vez. Ou melhor: tornou-se uma espécie de bonita colónia penal onde os reclusos gozam de saídas precárias para logo regressarem às celas segundo o horário imposto. Pelas melhores razões, quero acreditar. Mas uma privação da liberdade, mesmo em casos de força maior e de bem comum, como este é, será sempre retirar a única coisa que me levaria a pegar em armas para a preservar. E sim, dói um bocadinho.

Existe a vantagem triste, no entanto, de já termos conhecido esta sentença ainda há poucos meses; e embora o cansaço seja maior, consegue-se lidar melhor com a solidão que é sempre estar confinado – mesmo que o estejamos numa casa cheia de gente. Arranja-se artimanhas, artifícios para melhor suportar o torpor invisível das horas de chumbo.

Não sou excepção, amigos. E sem surpresa dei por mim a fazer arrumações há muito adiadas de memorabilia pessoal. Não por uma questão de nostalgia, apenas por motivos práticos. Enfim, a intenção pelo menos foi boa: mal olhei as fotos do prefácio de mim que um dia fui, artigos amarelados de jornal e bilhetes esquecidos de concertos as memórias dispararam sem filtro. Suponho que seja sempre assim quando confrontados com dias que julgávamos arrumados e etiquetados há muito. É por isso que devemos ter cuidado com estas arqueologias afectivas.

Mas de toda a parafernália de objectos avulsos que reencontrei os que mais me tocaram foram as cartas que recebi de amigos e amores. Ali, naqueles papéis, estavam estendidas pessoas, almas, juras de romance eterno, vontades de dominar o mundo, a certeza alegre e serena de que éramos imortais. As cartas possuem esse dom, de facto, e muito da civilização ocidental deve à forma epistolar: São Paulo, Abelardo e Heloísa, Séneca (Cartas a Lucílio). Os amores de Mariana Alcoforado ou do jovem Werther, que embora trágicos tiveram correspondência, sendo este meu trocadilho fraquinho mas intencional. E muitos outros testemunhos que nos devolvem o olhar de quem os escreveu, porque das cartas não existe muita distância: Sophia e Sena, Amis e Larkin, Beckett com quem lhe apetecia.

Mas ali, nas minhas mãos, estava algo que desapareceu e que faz toda a diferença. Confere humanidade, sentido e tempo ao que se escreve: a caligrafia. Não falo de grafologias ou outras “logias” que por mim fecharia de vez. É porque acho que a nossa letra também é parte do que somos. E essa a tragédia, amigos: já não me lembro como escrevo. Algo do que me é único e transmissível está em vias de se afogar no mar destes tempos. Não me posso queixar: a culpa é minha porque sem querer me rendi à forma anónima e instantânea como comunicamos hoje uns com os outros.

Num mundo dominado pela literalidade do comentário impulsivo, a caligrafia é um dos redutos possíveis. Longe de precisar de bonecos a reiterar emoções, o modo como se desenha a letra e o próprio acto de nos dispormos a tal já diz quase tudo. “Toda a palavra é fruto vivo”, avisava D. Francisco Portugal há quatro séculos. É verdade porque dizer “amo-te” continua a não ter a mesma força de escrever “amo-te” a alguém que amamos. A caligrafia assegura de forma espantosa a presença longínqua de quem escreve para quem lê.

É um rosto que não se vê, uma voz que não se ouve – mas que percebemos e sentimos.
Um dos poemas de amor portugueses de que mais gosto foi escrito por Fernando Assis Pacheco e termina com este verso belíssimo e absoluto: “Porque tudo se escreve com a tua letra”. Continuarei a acreditar nisto, sempre. Mas entretanto, e para me reencontrar, terei de voltar a aprender a escrever, com a minha letra.

Nuno Miguel Guedes

[Transcrição integral de artigo da autoria de Nuno Miguel Guedes publicado pelo jornal “Macau Hoje” de 18.11.20. Destaques e sublinhados meus. Imagem interior de “blog” homónimo.]

 

Issu daí é porrtugueiss universáu, viu?

A reboque ou à boleia (“pegando carona”, em brasileiro) do AO90 e do respectivo paleio-para-enganar-idiotas-deslumbrados sucedem-se as aberrações, qual delas a mais “imaginativa” e absurda. Já conhecemos as verdadeiras intenções da CPLB e, como escorrência (ou vomitado) daquela inacreditável palhaçada, as consequências catastróficas do AO90 sobre a Língua Portuguesa (Portugal e PALOP), mas de facto seria impossível sequer imaginar esta: brasileiros e brasileiras pretendem, à conta da tão propalada “língua universal” (o brasileiro), emigrar para cá e vir-nos “ensinar” a falar… Português. Ou seja, gêntchi, qui légáu, vamu dizê qui akilo é porrtugueiss; eles, pelo menos, apropriaram-se já da “marca”, a fingir que são muito europeus.

Confesso que nunca, jamais, em tempo algum poderia ter sequer imaginado semelhante coisa: 4 mil pessoas (4 mil, raios!) do Brasil vêm para cá ensinar o indígena (o “portuguesinho”) a usar a sua própria Lingua!

O AO90 em todo o seu brasileiro esplendor, em toda a sua asquerosa dimensão de ex-colónia que coloniza o ex-colonizador, em toda a dimensão sem medida do mais horrível pesadelo que acontece debaixo do Sol.

Inacreditável?

Não, é “terapia da fala”.

Fonoaudióloga brasileira em Portugal luta para provar que fala português…

– Veja mais em https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/11/22/fonoaudiologa-brasileira-em-portugal-luta-para-provar-que-fala-portugues.htm?cmpid=copiaecola

Luciana Alvarez
Colaboração para o TAB, de Lisboa
22/11/2020 04h01

Quando Thaís Cruz chegou a São Paulo falando “tu vais”, “tu queres”, os colegas da faculdade de fonoaudiologia logo a apelidaram de portuguesinha. Thaís vinha na verdade de Belém, Pará, cidade onde se usa a segunda pessoa do singular (tu) por padrão. Thaís precisou viajar 2,5 mil km para fazer o curso porque, em 1997, não havia fonoaudiologia em nenhuma faculdade paraense.

Quase 23 anos depois, agora morando em Cascais, município do distrito de Lisboa, a portuguesinha não consegue exercer a fonoaudiologia porque seu português não é suficientemente português, segundo o órgão responsável por regular a profissão no país de Camões. Depois de passar por uma entrevista e escrever uma redação, recebeu um documento dizendo que ela não domina a semântica (sentido das palavras), a morfossintaxe (construção das frases), a fonética e a fonologia (os sons) do português europeu.

Preconceito linguístico ou reserva de mercado seriam as verdadeiras motivações para que seu credenciamento profissional em Portugal tenha sido negado, acredita Thaís. “A existência da prova é um disparate. Se eu não tivesse as habilidades linguísticas, sequer conseguiria me comunicar com as entrevistadoras. A justificativa é completamente inaceitável”, afirma a brasileira, que faz mestrado na área de linguagem na Universidade Nova de Lisboa.

Thaís não é a única fonoaudióloga formada no Brasil impedida de trabalhar como “terapeuta da fala” em Portugal — assim é a nomenclatura local. No dia de fazer a prova, conheceu outras fonos brasileiras, que acabaram se reunindo num grupo de WhatsApp, que foram chamando outras conhecidas. Hoje, o time das reclamantes têm quase 40 profissionais. Algumas ainda esperam ser convocadas para o exame, outras aguardam os resultados. O processo todo, entre dar entrada na papelada e receber o resultado, leva quase dois anos. Todas que já receberam resposta tiveram seus pedidos indeferidos com a mesma justificativa, ipsis litteris.

O número total de profissionais tentando obter o registro deve ser muito maior — nas redes das fonos brasileiras, especula-se que cheguem a 4 mil. Procurada pela reportagem, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) não informou até quinta-feira (19) qual era o número de pedidos de credenciamento total, quantos foram aceitos e quantos foram negados.

Com o recente aumento da emigração brasileira para Portugal, alguns setores de profissionais da saúde sentem pressão com a chegada de diplomados. Mais de 50% dos dentistas estrangeiros que atuam em Portugal vieram do Brasil; são quase 500 com autorização para trabalhar. Entre os médicos, há quase 600 registros de brasileiros, com número de pedidos de autorização recorde em 2018.

Sem conseguir o registro, muitas fonos acabam trabalhando em funções de baixa especialização. Thaís conta que já trabalhou na parte administrativa de um asilo, mas não gostou. “Sou fonoaudióloga. Foi a profissão que escolhi para a minha vida e não sei ser outra coisa.”

A prova para comprovar que falam português passou a ser exigida apenas em 2018. Quando questionada, a ACSS não explicou por que decidiu submeter os profissionais a um exame de proficiência no seu seu idioma materno, tampouco mostrou os referenciais teóricos para classificar o português europeu, uma variante regional, um fator decisivo para a atuação de terapeutas da fala.

As diferenças na forma de se expressar fazem com que um cidadão português reconheça um brasileiro no primeiro “oi”, até porque, em Portugal, usa-se “olá”. Mas a língua em Portugal continua sendo a mesma falada oficialmente no Brasil e em mais sete países de África e Ásia.

Existem tratados internacionais, como o Acordo Ortográfico de 1990, e órgãos oficiais, como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), uma espécie de ONU, cujos objetivos comuns são a “defesa do prestígio internacional” e “promoção e difusão da Língua Portuguesa”. Assim, em maiúsculas, no singular e sem subdivisões.

Dentro do próprio território português, embora pequeno, há variações de palavras, construção de frases e de pronúncia. No sul do país, tênis é chamado de sapatilha. No Alentejo, usa-se o gerúndio como no Brasil e como usava Camões, embora no restante do país a construção normal seja diferente: dizem “estou a escrever”, em vez de “estou escrevendo”. No norte, o som do “v” se parece como o do “b”, como se fala no espanhol.

Na prática, as variantes do idioma não afetam o trabalho de um terapeuta da fala. Thaís faz um estágio em hospital não remunerado (porque não tem registro) e conta que nunca teve dificuldade de desempenhar qualquer função. “Faço vários exames. Em um deles, falo algumas palavras e as pessoas têm de repetir. Ninguém nunca reclamou”, garante.

Também já ajudou, informalmente, a filha de uma amiga portuguesa a pronunciar o /l/ do jeitinho português. “Cá em Portugal o fonema /l/ no final das palavras produz-se com a elevação da ponta da língua. Em duas semanas eu consegui instalar o fonema na miúda de 6 anos. Apesar de eu falar ‘Portugau’, porque sou brasileira, eu estudei a produção fonoarticulatória dos fonemas”, explica ela, já introjetando o “miúda” característico.

Por considerar o exame da ACSS “um absurdo”, Thaís tentou outro caminho para comprovar que fala, sim, português. Já tinha um laudo de um terapeuta da fala nascido, criado e estudado em terras lusitanas. O laudo foi apresentado, mas nada adiantou. Tentou fazer uma prova externa, mas a única certificação de idioma do Estado Português, do Instituto Camões, não é aplicada a brasileiros, pois dirige-se exclusivamente a quem fala português como língua estrangeira.

Enquanto aguarda uma solução, contínua no mestrado e faz até aulas de português europeu. “Resolvi estudar por causa do mestrado, não para mudar o sotaque, mas pelo fato de a gramática ser diferente — o que não quer dizer que seja melhor ou pior, certo ou errado. Como estudiosa da linguagem, penso ser interessante conhecer essas variações”, explica.

Apesar da frustração, Thaís mantém a esperança de conseguir validar de alguma forma seu diploma. Já contactou um advogado e deve ser a primeira do grupo das fonos brasileiras a levar o caso à Justiça. As demais se articulam para esperar a manifestação do juiz e, dependendo do teor, entrar uma ação coletiva. Para ela, a história realmente ainda vai dar o que falar.

[Transcrição integral de artigo com o título “Fonoaudióloga brasileira em Portugal luta para provar que fala português…”, com redacção da autoria de Luciana Alvarez, publicado online em “Tab” a 22.11.20. Destaques e “links” meus. Foi conservada, sem corrector automático ou manual, a cacografia do original em brasileiro. Base da imagem de topo: magalu (Brasil)]

[A reprodução de artigos e/ou conteúdos da autoria de terceiros tem por finalidade única a constituição de acervo documental sobre tudo aquilo que, segundo critérios meus, interessam ou dizem respeito ao chamado “acordo ortográfico” (e a outros detritos).]

Malhas que o II Império tece

Isto é uma das primeiras consequências visíveis, se bem que ainda de bandeirantes, das manobras de experimentalismo social e de engenharia política (ou vice-versa) da tremenda historinha a que se chamou — por facilitação propagandística — Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) e, por arrasto estupidificante, o indizível, risível, incrível AO90.

Alunos brasileiros, na miragem do canudo académico para serem “doutores”, vêm para Portugal “estudar” enquanto na maioria espreitam a Europa por um canudo, para a qual se esgueiram à primeira oportunidade, honra lhes seja feita, lá fura-vidas são eles. Se bem que a dupla nacionalidade lhes dê muito jeito, é até condição sine qua non.

Em suma, e mesmo deplorando qualquer hipotética violência (de que, aliás, não há notícia, à excepção dos delírios catastrofistas habituais), não deixa a local de ter todo o interesse — até pelo ligeiríssimo e imediatíssimo aproveitamento de umas minudências (e de umas quantas “bocas” estudantis), que para o efeito tudo serve, mesmo (ou principalmente) se não existir.

Há racismo nas universidades portuguesas

Museólogo;
deputado do Bloco de Esquerda
publico.pt, 17 de Novembro de 2020

Chegaram a público relatos de comportamentos xenófobos para com estudantes da comunidade brasileira (a maior a estudar em universidades portuguesas). As queixas que começaram a bater à porta das reitorias resumem casos de insulto permanente, exclusão social por parte de docentes, insinuações sobre a presença das brasileiras no país, tratamento inferior em residências estudantis.

Desde a aprovação do novo Estatuto do Estudante Internacional (Decreto/Lei 36/2014) que o ensino superior português iniciou um novo caminho no sentido da sua internacionalização. Mas de que tipo de internacionalização estamos a falar?

Este movimento de internacionalização da Academia em Portugal pressupõe a capacidade de atracção de novos públicos para as instituições de ensino superior. Esse movimento, que não é novo — estude-se, a título de exemplo, o caso dos estudantes dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) a estudar cá —, tem tido, essencialmente, um papel de balança na tesouraria dado o valor elevado a que estes estudantes estão sujeitos na hora do pagamento de propinas. Por outro lado, todas as vantagens inerentes a um alargamento da base cultural e étnica do espaço académico português parecem ter ficado na gaveta. O racismo incrustado na sociedade portuguesa estalou no universo onde o pensamento crítico devia imperar. Liberalizou-se a sua entrada, feudalizaram-se ainda mais as relações sociais com quem que chega de fora.

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Chegaram a público relatos de comportamentos xenófobos para com estudantes da comunidade brasileira (a maior a estudar em universidades portuguesas). As queixas que começaram a bater à porta das reitorias resumem casos de insulto permanente, exclusão social por parte de docentes, insinuações sobre a presença das brasileiras no país, tratamento inferior em residências estudantis. No mês passado, a Universidade do Porto sentiu a necessidade de se desmarcar de uma nova página nas redes sociais onde estudantes da Faculdade de Engenharia partilhavam insultos a estudantes internacionais, principalmente dirigidos a jovens brasileiras. A página foi apagada, os insultos não ficaram esquecidos. A demora na tomada de posição por parte dos órgãos da própria faculdade também é reprovável. Já em 2019, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tinha assistido a um momento tão triste quanto revoltante. Um grupo de estudantes decidiu oferecer pedras aos colegas portugueses para as poderem atirar aos “zucas” que passassem à sua frente no mestrado. Não é brincadeira, é xenofobia.

Existe, a par deste quotidiano violento, um conjunto de regras e práticas preconceituosas. Na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, aos estudantes brasileiros é-lhes exigida uma média de 16 valores para ingressar no curso, ao contrário de todos os outros estudantes (nacionais ou internacionais), que precisam de 13 valores. Vários estudantes queixam-se de não poder utilizar o português do Brasil em testes, exames e trabalhos, exactamente nas mesmas provas onde é permitida a entrega desses instrumentos de avaliação em inglês (facilitando a participação da restante comunidade estrangeira).

A mesma instituição que assume como um dos seus objectivos actuais a internacionalização parece ter dificuldades em adaptar-se à nova realidade que a própria criou: o aumento do número de estudantes internacionais — maioritariamente brasileiros — a estudar em Portugal. A universidade feudal-neoliberal é isto: assenta a sua relação num tratamento socialmente desigual, enquanto trata estes estudantes como activo financeiro com propinas abismais para equilibrar as suas contas.

Os novos colectivos de estudantes internacionais no Porto, em Coimbra, em Aveiro ou de cariz nacional são o primeiro grito de revolta sobre as suas novas vidas e novas opressões. É responsabilidade nossa, cidadãos que nasceram neste território e com tanta história de emigração, compreendermos as suas razões e sabermos apoiá-los.

Há racismo nas universidades portuguesas. Só fecha os olhos a essa realidade quem não sente na pele, quotidianamente, o que é ser tratada de forma diferente pela sua origem ou cor da pele, língua ou cultura. Uma universidade sem muros nem fronteiras ainda é projecto por vir.

[Transcrição integral de artigo, da autoria de um tal

Bom, enfim, em prol da nossa mais elementar sanidade mental, para espairecer de tantas amarguras alheias, aqui fica o poema de Fernando Pessoa que, por extenso, diz tudo (pronto, sim, tudo é exagero, vale, então, muito) do nosso extinto Império (e que serve de título a este “post”). Mal sonhava ele, Pessoa, bem como a maioria das pessoas, nanja no seu pior pesadelo, que a seguir viria outro, e ao contrário, o II Império (brasileiro).

O Menino de Sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

[Foto de: “blog” Cartas das Trincheiras”]