“O Primo Basílio”, de Eça de Queirós, em brasileiro (“revisado” conforme o AO90)

E depois podia atenuar, dizer que fora só uma correspondência platônica… A partida de Basílio, além disso, fazia daquele erro um fato passado, quase antigo… E Sebastião era tão amigo dela!

Source: O Primo Basílio – Eça de Queiroz – Google Books

 

O excerto original em Português:

E depois podia atenuar, dizer que fora só uma correspondência platónica… A partida de Basílio, além disso, fazia daquele erro um facto passado, quase antigo… E Sebastião era tão amigo dela!

«Cabo Verde e uma justa lembrança» [Nuno Pacheco, “Público”]

Cabo Verde e uma justa lembrança

“Se há uma língua, que é a língua portuguesa, há várias normas e logicamente umas tantas variantes”, escreveu Manuel Ferreira

Nuno Pacheco – 29 de Dezembro de 2016, 6:45

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Alguém lembrou, e bem, que tendo o título da minha crónica de 15 de Dezembro aludido a uma das mais celebradas obras do escritor Manuel Ferreira (Hora Di Bai, de 1962), isso devia ter sido ali assinalado. Discordando do princípio (inúmeros títulos de artigos ou obras de arte citam abertamente outros, de conhecimento geral, num claro jogo de memórias, sem que tal citação seja explicitamente atribuída), o pretexto de falar nesse grande africanista e na sua obra é irrecusável. Mas antes convém recordar que não só a expressão crioula “hora di bai” (hora da despedida, hora da partida) é antiga e corrente em Cabo Verde, como o grande compositor Eugénio Tavares (1867-1930) fez dela título de uma célebre morna sua, Hora di bai, escrita muito antes, em finais do século XIX: “Hora di bai,/ Hora di dor,/ Já’n q’ré/ Pa el ca manchê!/ De cada bêz/ Que ‘n ta lembrâ,/ Ma’n q’ré/ Fica ‘n morrê!”

Porém, é Manuel Ferreira (1917-1992) que aqui se recorda. Nascido em Gândara dos Olivais, Leiria, foi ele que introduziu o ensino das literaturas africanas na universidade portuguesa, após o 25 de Abril de 1974. Permaneceu vários anos da sua vida em Cabo Verde (onde se casou com a escritora Orlanda Amarílis), Índia e Angola, visitando outros países africanos e tornando-se um dos maiores especialistas da cultura africana de expressão portuguesa. É nesse contexto que se desenvolve a sua obra, composta por contos, romances, ensaios e até livros infantis, e onde sobressaem títulos como Morna (1948), Morabeza (1958), Hora di Bai (1962) ou A Aventura Crioula (1967). Em Hora di Bai escreve: “Noite de Mindelo é sabe”; e no glossário final explica que “sabe” quer dizer “agradável, saboroso, aprazível”. É o crioulo cabo-verdiano enlaçado no português, na música da literatura.

No prefácio que escreveu para a 1.ª edição de A Aventura Crioula, o escritor, poeta e linguista Baltasar Lopes alinhava argumentos para defender “que o crioulo padrão para uso literário se há-de fixar, partindo da base fonética do falar de Sotavento” (no de Barlavento, notava ele, operara-se um desgaste fonético pela queda de vogais átonas pretónicas e postónicas, provocando um encontro áspero de consoantes). Manuel Ferreira, que nesse livro (devedor de uma outra aventura, decisiva para a cultura de Cabo Verde, a da histórica revista Claridade, a partir de 1936) antevia a existência futura de “um crioulo universal” a par com um hibridismo no recurso simultâneo ao crioulo e ao português, veio mais tarde, no opúsculo Que Futuro para a Língua Portuguesa em África? (1988), a notar que a entrada de línguas maternas africanas nas escolas viria a desenvolver literaturas nessas línguas, dando exemplos (na altura mais recentes) de antecipação literária em Cabinda e Moçambique, a par das literaturas em crioulo de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Isto não significaria, necessariamente, o relegar do português para um papel subalterno (registe-se que em Cabo Verde vai ser ensinado nas escolas como “Língua Segunda” — termo que, diplomaticamente, substituiu o “Língua Estrangeira” das primeiras notícias sobre tal facto), mas levaria ao reconhecimento e fixação de várias normas do português, consoante os países. Fazendo os africanos do português língua sua. “Tão sua”, escreveu Manuel Ferreira, “que a modificam, a alteram, a adaptam ao universo nacional e regional, no plano da oralidade e no plano da escrita. (…) E se há uma língua, que é a língua portuguesa, há várias normas e logicamente umas tantas variantes: a variante da Guiné-Bissau, a variante de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, a variante de Angola, Moçambique, do Brasil, de Goa, da Galiza, de Timor-Leste, a variante de Portugal.

Para algumas criaturas, isto é um suicídio linguístico e, amedrontadas, impuseram a contestada “unificação” ortográfica que se conhece. Mas, na verdade, a esta visão de Manuel Ferreira deve chamar-se inteligência. Em lugar de olhar a língua como outros antes olhavam o império (uno e indivisível!), Manuel Ferreira anteviu nela, em África, uma saudável aculturação. Se tivéssemos há muito ido por aí, estaríamos todos mais felizes, no final deste triste ano de 2016.

[Nuno Pacheco, “Público”, 29.12.16. Adicionei “links”. Destaque meu. Imagem de topo de: claridade.org]

‘Os Maias’, de Eça de Queirós, em brasileiro (“revisado” conforme o AO90)

Teve de se calar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado até aos olhos na gola de uma ulster donde saíam as pontas de um cachenê de seda clara. O escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e ele, de casaca e colete branco, limpando o bonito bigode úmido da geada, veio apertar a mão ao caro Vilaça, ao amigo Eusébio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu chique…

—Nada, nada — dizia Vilaça todo amável — cá o nosso solzinho português sempre é melhor…
E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquês, de Carlos, numa das suas sábias e prolixas cavaqueiras sobre cavalos e esporte.

Source: Os Maias [Biografia, Ilustrado, Índice Ativo, Análises, Resumo e Estudos … – Eça de Queirós – Google Books

 

O excerto original em Português:

Teve de se calar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado até aos olhos na gola de uma ulster donde saíam as pontas de um cache-nez de seda clara. O escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e ele, de casaca e colete branco, limpando o bonito bigode húmido da geada, veio apertar a mão ao caro Vilaça, ao amigo Eusébio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu chique…
—Nada, nada — dizia Vilaça todo amável — cá o nosso solzinho português sempre é melhor…
E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquês, de Carlos, numa das suas sábias e prolixas cavaqueiras sobre cavalos e sport.

Lampadinhas

A “maravilhosa língua unificada” e a não menos “maravilhosa revisão do AO90″…

Oops, peço desculpa, não é “revisão” que se diz, agora parece ser obrigatório chamar “aperfeiçoamento” à fantochada.

Os acordistas portugueses conseguiram fazer esta coisa espantosa com o Português: transformá-lo numa espécie de “brasileiro” (como se vê, por exemplo, na bandeirinha que abrilhanta o site da Babbel) e assim, entrouxando essa tremenda vigarice em delírios para deslumbrar pategos, fazer passar a golpada por uma coisa a que chamam “língua unificada”.

Tentemos ignorar o ridículo da “ideia” e vamos fingir, por uma vez sem exemplo, que não alcançamos ao certo a dimensão da fraude. Talvez seja útil desaprender amiúde tudo aquilo que julgamos saber sobre o “acordo” e voltar por sistema à estaca zero. Reciclar o espanto, digamos, depurar a indignação.

É evidente, a julgar pelas últimas investidas, que o processo de brasileirização em curso (PBC) ficaria incompleto caso não existisse um continuum gradativo. Como se costuma dizer, isto vai de mal a pior: visto que o “acordo ortográfico” propriamente dito não unifica coisíssima nenhuma e até, pelo contrário, veio criar novas duplas grafias onde elas não existiam, então vá de “melhorar” a besta (ou “despiorar”, como há já quem designe essa trafulhice), consagrando exclusivamente não apenas a ortografia brasileira como também a própria fala dos brasileiros (“norma culta”, dizem eles). A premissa é muito simples: caso no Brasil  se pronuncie determinada consoante que é “muda” em Portugal (e PALOP), então essa consoante, que o AO90 eliminara em 7 países mas não no Brasil, volta a ser “válida”; portanto, as ditas consoantes “mudas” passam a “valer” de novo em todos os 8 países da CPLP, mas essa “validade” é só para aquelas que… os brasileiros articulam e que, portanto, utilizam na (sua) escrita.

Dito de outro modo, porque isto parece ser de muito difícil compreensão para quem não quer entender ou se recusa a aceitar aquilo que é por demais evidente:  a anunciada “revisão” do AO90, artisticamente baptizada pela ACL como  “aperfeiçoamento”, não é mais do que a segunda etapa do PBC e consiste basicamente em impor a norma ortográfica brasileira no espaço da chamada “lusofonia”. Sintetizando, meia dúzia de fulanos que nasceram em Portugal (assessorados por alguns estupefactos brasileiros) pretendem impingir ao país de origem da Língua e a seis ex-colónias portuguesas uma coisa a que chamam “língua portuguesa unificada” mas que na verdade e de facto é a “norma” da sétima ex-colónia.

O PBC, na prática, caso se verifique não haver em Portugal senão umas quantas manadas de ruminantes, significará esta coisa arrepiante, nojenta, escabrosa: para escrever uma palavra “corretamente” (em “brasileiro”) qualquer português terá de saber — de memória ou perguntando para os lados —  como se redige, ou seja, como se pronuncia essa palavra no Brasil.

Os “arquitetos” do PBC não brincam em serviço. Além das habituais campanhas de intoxicação da opinião pública, vão já experimentando até uma velhíssima técnica de “marketing”: inventar de raiz uma necessidade para resolver problemas gerados por outra necessidade que eles mesmos tinham também previamente inventado  prevendo a segunda campanha e destinando-se essa a resolver problemas que jamais existiram.

Mal comparado, seria o mesmo que um “expert” (“esperto”, no crioulo de Malaca) lembrar-se de lançar uma marca de sabonetes “para emagrecer” e viesse uns tempos depois colocar no mercado um antídoto para as pessoas que desataram a comer sabonetes…

A peça seguinte ilustra na perfeição estes conceitos de vendedores de banha-da-cobra com designação genérica em Inglês: o AO90 jamais serviu para coisa alguma, foi uma invenção não apenas totalmente inútil como estupidamente perniciosa, mas agora há estas “diferençazinhas” (que antes do mesmo AO90 não existiam), portanto vá de “melhorar” o AO90, eliminem-se as tais “diferençazinhas” (que antes não existiam mas isso agora não interessa nada, faz de conta que sempre foi assim).

Génios da corda. Lampadinhas.

 

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Certains mots s’épellent différemment en portugais européen et portugais brésilien. Le mot «réception», par exemple, s’écrit au Portugal receção, tandis que la version brésilienne rajoute un -p : recepção. Cette différence s’étend à d’autres mots auxquels la prononciation brésilienne rajoute un -p là où il est absent dans la prononciation européenne.

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