Uma oportunidade perdida


Já aqui realcei a incrível estupidez que foi este partido político ter-se deixado enredar nas intrigas palacianas dos peticionistas compulsivos, mas ainda assim parece-me continuar a merecer destaque o Projecto de Resolução que o dito partido apresentou recentemente.

Foi, na verdade — ou, melhor dizendo, poderia ter sido, caso o Grupo Parlamentar proponente não tivesse sido “parvo” — a melhor e mais viável proposta até hoje apresentada no Parlamento para desatar o imbróglio político (ou a incrível vigarice) a que se convencionou chamar “acordo ortográfico”.

A estupidez do “timing” na apresentação e a sua absurda mistura com uma petição idiota não retiram um átomo ao mérito da redacção, à credibilidade da sustentação ou à viabilidade da proposta.

Intervenção de Ana Mesquita na Assembleia de República

O PCP saúda os mais de 20 mil subscritores da petição, alguns dos quais aqui presentes nas galerias da Assembleia da República.

Em 4 de Junho de 1991, o PCP foi único Grupo Parlamentar que não votou favoravelmente a Proposta de Resolução sobre a ratificação do Acordo Ortográfico. Fizemos críticas severas quanto à metodologia seguida pelo Governo para apuramento das bases do AO90. Manifestámos as nossas preocupações quanto às consequências do Acordo, alertando que o processo tendia, e cito “a transformar-se num atoleiro cujas dimensões e proporções desconhecemos.” Estava certo o PCP.

De facto, veio o Primeiro Protocolo Modificativo, veio o Segundo, o Acordo continuou a ser um mau Acordo, a não responder às críticas feitas em 1990 por várias pessoas e entidades. E aqui estamos hoje. Subsistem incongruências, insuficiências, dificuldades práticas na aplicação do Acordo, visíveis todos os dias nas escolas, nos média, nos livros, nas páginas oficiais de entidades públicas. Foram referidas por inúmeras vezes em contributos escritos e audições dos Grupos de Trabalho sobre esta matéria.

O PCP não tem uma concepção fixista em torno da ortografia. Mas valorizamos a participação política e científica, o robustecimento técnico da norma escrita, a democraticidade da escrita e da oralidade. E estes são aspectos determinantes que não foram plenamente alcançados ou, alguns, sequer tidos em conta neste processo.

A existência de um qualquer Acordo só pode ter algum sentido se for integrada no contexto mais global de uma verdadeira política da língua.

Que promova maior cooperação com os países de língua portuguesa, com um profundo e intrínseco respeito pela identidade cultural de cada povo, que assuma a necessidade de promoção e difusão do livro e dos autores portugueses, que reflicta sobre a natural evolução da Língua envolvendo todos os interessados. Não por via de imposições legislativas desligadas da realidade concreta e da comunidade.

A verdade nua e crua é que, volvidos 28 anos, não existe um Acordo Ortográfico comummente aceite, ratificado e depositado, por todos os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Não há sequer previsão concreta em relação a países como Angola ou Moçambique. Falta-lhe o alicerce.

Há quem considere impossível ou contraproducente voltar atrás e corrigir os erros cometidos porque muitas crianças e jovens já aprenderam o Acordo na escola, mas não houve qualquer pejo em fazer experimentalismo ortográfico com os alunos que tiveram de o aprender.

A esmagadora maioria da população aprendeu a norma ortográfica anterior, e também por isso, não é tarde para corrigir um percurso com origem num procedimento errado, desde que se acautelem as necessárias medidas de acompanhamento a quem aprendeu e utiliza a grafia do Acordo.

É preferível aprender com todo este processo, estudá-lo, sair do Acordo Ortográfico e devolver a discussão – ou melhor, dar finalmente a discussão – à comunidade científica e literária na definição de objectivos e princípios de partida para uma nova negociação das bases e termos de um Acordo Ortográfico, assim seja entendida a sua necessidade, junto dos restantes países da CPLP.

É essa a proposta do PCP.

Source: PCP recomenda o recesso ao Acordo Ortográfico de 1990 | Partido Comunista Português

Desenho de: Facetoons

Milagre

«“Não deve confundir-se a função política, ao abrigo da qual foi assinado o Tratado do Acordo Ortográfico (1990) e o 2º Protocolo Modificativo, com a muito diversa função administrativa, ao abrigo do qual emitiu o Governo a Resolução do Conselho de Ministros e as `notas informativas’ do Ministério da Educação, nesta acção visadas”, alega ainda Artur Magalhães Mateus e restantes requerentes.»

Eisch. Fantástico. Isto significa que nem toda a gente nos três grupelhos “anti-AO” do Fakebook é absolutamente imbecil. Até que enfim, há pelo menos um daqueles indivíduos que reconhece a evidência mais básica!


Supremo Tribunal Administrativo vai analisar recurso que contesta legalidade do acordo ortográfico

Os recorrentes pretendem que sejam declaradas ilegais as normas da Resolução de Conselho de Ministros que impõem aos alunos do sistema educativo público o Acordo Ortográfico de 1990, bem como as normas regulamentares constantes das notas informativas do Ministério da Educação de Fevereiro e Setembro de 2012.

O Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA) vai analisar um recurso contra a decisão que considerou a jurisdição administrativa incompetente para apreciar a aplicação obrigatória do Acordo Ortográfico de 1990 aos alunos das escolas públicas.

A decisão de admitir o recurso consta de um acórdão de 22 de Fevereiro dos juízes do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA, a que a Lusa teve acesso.

Em causa estava um recurso de Artur Alexandre Magalhães Mateus e outras pessoas para o pleno daquela secção do STA contra o acórdão em primeira instância daquele mesmo tribunal que declarou a “jurisdição administrativa incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade” da norma sobre a aplicação obrigatória do Acordo Ortográfico de 1990 aos alunos das escolas públicas.

Na acção popular administrativa de impugnação daquela norma, os recorrentes pretendiam que fossem declaradas ilegais as normas da Resolução de Conselho de Ministros no que se refere à imposição aos alunos do sistema educativo público do Acordo Ortográfico de 1990, bem como das normas regulamentares constantes das notas informativas do Ministério da Educação de Fevereiro e Setembro de 2012.

No recurso, agora acolhido para ser apreciado, os requerentes alegam, entre outros pontos, que o acórdão recorrido incorre em “grave contradição” ao afirmar que a Resolução de Conselho de Ministros e as “notas informativas” do Ministério da Educação “não têm natureza administrativa, mas política”.

“Não deve confundir-se a função política, ao abrigo da qual foi assinado o Tratado do Acordo Ortográfico (1990) e o 2º Protocolo Modificativo, com a muito diversa função administrativa, ao abrigo do qual emitiu o Governo a Resolução do Conselho de Ministros e as `notas informativas’ do Ministério da Educação, nesta acção visadas”, alega ainda Artur Magalhães Mateus e restantes requerentes.

Nas suas contra-alegações, o Estado, representado pelo Ministério Público, argumenta que o acordo ortográfico celebrado em 1990 teve por objectivo criar uma ortografia unificada a ser usada por todos os países de língua oficial portuguesa e que o acto “emana do exercício da função política e não do exercício da função administrativa, comportando relevância jurídica nacional e internacional”.

Os juízes do Pleno reconhecem que esta é uma “daquelas zonas de fronteira em que é difícil estabelecer com nitidez a linha entre o que ainda é expressão imediata da função de orientação e direcção políticas do executivo e o que já é concretização normativa dessa função e das decisões em que se materializa”, mas concluem que “não andou bem o acórdão recorrido ao declara a jurisdição administrativa incompetente (em razão material) para conhecer a ilegalidade” das normas constantes da Resolução de Conselho de Ministros que impõe a obrigatoriedade do acordo ortográfico de 1990 aos alunos do ensino público.

“Sucede que, ao considerar-se, como agora se faz, que os números 1 e 3 da Resolução de Conselho de Ministros são actos de natureza regulamentar, há que dar razão aos recorrentes, julgando este Supremo Tribunal hierarquicamente competente para apreciar a ilegalidade das ‘notas informativas’ (do Ministério da Educação)”, refere os juízes do Pleno do Contencioso Administrativo do STA.

Com estes fundamentos, acordam os juízes do pleno “em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em ordenar a baixa dos autos à Secção para que se conheça do pedido” e seja apreciada a questão de fundo sobre a ilegalidade (ou não) da resolução de Conselho de Ministros que tornou obrigatório o acordo ortográfico para os alunos do ensino público.

Source: Língua Portuguesa | Supremo Tribunal Administrativo vai analisar recurso que contesta legalidade do acordo ortográfico | PÚBLICO

“Decisão”?

Uma decisão para lamentar

Luís Menezes Leitão
Jornal “i”, 27.02.18

O acordo ortográfico contribui para abolir as variantes cultas das palavras e as suas ligações etimológicas. A língua portuguesa torna-se mais pobre e distante das suas raízes, transformando-se num idioma de laboratório.

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A semana passada foi marcada pela rejeição, pelo parlamento, da proposta do PCP de abandono do acordo ortográfico. Trata-se de decisão que demonstra bem a insensibilidade dos nossos deputados, uma vez que, perante o desastre que está a ser a aplicação deste acordo, o parlamento prefere ignorar o que se está a passar, assistindo pacificamente à destruição total da língua portuguesa. Porque de facto, com este acordo ortográfico, o português europeu está a transformar-se num estranho dialecto, com regras escritas incompreensíveis, que se afastam da sua etimologia e das restantes línguas latinas. Com a agravante de nem sequer haver qualquer uniformização com os outros países de língua portuguesa que ou não aplicam o acordo ou do mesmo resulta que sigam regras diferentes, graças à pronúncia que utilizam.

Um bom exemplo disto resulta da recente tradução do livro da escritora argentina María Gainza, que em espanhol se chama “El nervio óptico”, mas que no português acordista se transforma em “O Nervo Ótico”. O problema é que sempre se utilizou na língua portuguesa a expressão “ótico” como relativa ao ouvido, reservando-se o termo “óptico” para a visão. Tal é o significado dos respectivos antecedentes gregos “otikos” e “optikos”. O acordo ortográfico aboliu esta distinção essencial, mas apenas no português de Portugal, continuando a distinção a existir no português do Brasil. Será que isto faz algum sentido?

E o mesmo sucede com outras palavras como “recepção”, “concepção”, que se conservam sem alterações na ortografia brasileira, mas que na portuguesa passam a “receção” e “conceção”, facilmente confundíveis com “recessão” e “concessão”. Qual a necessidade de abolir a grafia anterior se o que se consegue é criar uma ortografia que ainda mais se diferencia da dos outros países lusófonos?

Isto já para não falar da multiplicação dos erros de escrita que o acordo ortográfico causou, com a absurda directriz de querer abolir as consoantes mudas, estando muita gente a abolir consoantes que continuam a pronunciar–se. É assim que já se viu aparecer erros como “fato”, “ineto”, “corruto”, que demonstram bem a falta de critério na abolição das consoantes pretensamente mudas.

E por último deveria salientar-se o facto de o acordo ortográfico contribuir para levar à abolição das variantes cultas das palavras e às ligações etimológicas das mesmas. Assim, a expressão culta “ruptura”, mais próxima do latim, foi transformada em “rutura”, esquecendo-se que já existia a variante popular “rotura”. Fala-se em “ótico” para a visão, mas esquece-se que a medição da mesma continua a ser a “optometria”. E os egípcios, pelos vistos, passaram agora a viver no “Egito”, esquecendo-se que a palavra Egipto tem origem no deus Ptah que, que se saiba, ainda não passou a Tah. Com o acordo ortográfico, a língua portuguesa torna-se assim mais pobre e distante das suas raízes, transformando-se num idioma de laboratório.

Na banda desenhada “Spirou e Fantásio”, da autoria de Franquin, aparece um vilão chamado Zorglub que pretende criar uma ditadura alterando o cérebro das pessoas, o que as faz falar e escrever numa nova língua, a zorglíngua, em que todas as palavras surgem ao contrário. Esperava-se que um parlamento democrático, como o português, nos livrasse deste triste destino. Mas afinal, graças aos restantes partidos, com excepção do PCP, vai tudo continuar como dantes. Isto não foi uma decisão parlamentar, foi uma decisão para lamentar.

[Transcrição integral de Uma decisão para lamentar, por Luís Menezes Leitão, Jornal “i”, 27.02.18. Destaques e “links” meus. Imagem de topo: não encontro autoria.]

Polícia da Língua

A “novilíngua” portuguesa?

Mário Cunha Reis
“Diário do Minho”, 25.02.18

Na obra de ficção “1984”, o escritor inglês George Orwell (1903-1950) procura mostrar as “perversões” a que regimes centralizados como o comunismo ou o fascismo estão sujeitos. Descreve um super‑Estado dirigido por um regime totalitário chamado de “socialismo inglês”, no qual a vigilância governamental é omnipresente (“Big Brother”), o revisionismo histórico e a destruição de documentos que contrariam a versão oficial dos factos é sistemático e indispensável à sobrevivência do regime, as liberdades individuais e a liberdade de expressão são suprimidas, consideradas “crime de pensamento” e fortemente perseguidas pela “polícia do pensamento”.

Um dos seus mais importantes instrumentos de manipulação consistiu na criação da “novilíngua”, um idioma fictício que, através de alterações do significado de certas palavras, da sua substituição por outras ou ainda pela proibição do seu uso, reduz a capacidade de as pessoas poderem pensar e comunicar. A dita “novilíngua” chegou aos nossos dias sob a forma de discurso “politicamente correcto”, que foi sendo adoptado devido a uma aparente preocupação com a defesa e promoção da igualdade de direitos entre mulheres e homens, a que vieram a chamar de “igualdade de género”.

A palavra “género” entrou no quotidiano e na linguagem política e na legislação nacional para designar e substituir a palavra “sexo”, o sexo biológico de uma pessoa. Poderá parecer que tal terá acontecido por se tratar de uma palavra mais polida ou refinada, uma vez que a palavra sexo pode mais facilmente ser associada a relação ou acto sexual. Mas não!

Na verdade, a palavra “género” foi introduzida no vocabulário político internacional, em 1995, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, organizada pela ONU, em Pequim, por intelectuais feministas (marxistas e trotsquistas, liberais quanto à moral e liberdade sexuais), com o objectivo de desconstruir a família natural – a constituída por homem e mulher, que permite gerar a vida –, entendida por estas feministas como a fonte de opressão na sociedade e a pedra base do capitalismo.

A chamada “ideologia de género” tem vindo a impor-se de forma furtiva nas nossas vidas, através dos sistemas educativo e de saúde, dos meios culturais e políticos, com forte apoio e divulgação através dos meios de comunicação social.

Mas o que tem isto a ver com a língua portuguesa?

Vem isto a propósito da publicação do “Regime Jurídico da Avaliação de Impacto de Género de Actos Normativos” (Lei n.º 4/2018, de 9 de Fevereiro), projecto da iniciativa do PS, que contou com a aprovação do BE, CDS-PP, PEV, PAN e com a abstenção do PSD e do PCP, e que entrará em vigor no próximo dia 1 de Abril.

Prevê que os projectos de lei, decretos-lei, regulamentos, etc. elaborados pela administração central, regional e local e propostas de lei à Assembleia da República, sejam sujeitos a “avaliação prévia de impacto de género”. O objectivo será a “diminuição dos estereótipos de género que levam à manutenção de papéis sociais tradicionais negativos” e “assegurar a utilização de linguagem não discriminatória (…) através da neutralização ou minimização da especificação do género, através do emprego de formas inclusivas ou neutras, designadamente através do recurso a genéricos verdadeiros ou à utilização de pronomes invariáveis.”.

Significa isto que o Estado se prepara para combater o que identifica como “papéis sociais tradicionais negativos”, com o mesmo critério que levou em 2017 a Comissão para a Igualdade de Género a “recomendar” a retirada do mercado de blocos de actividades distintos adaptados ao gosto estético comum de meninas e meninos dos 4 aos 6 anos.

O Estado passará, portanto, a limitar e a regular o uso da língua portuguesa, proibindo o uso de certas palavras e abrindo caminho à punição para quem não o cumpra.

Assim, depois da mutilação da língua portuguesa que resultou do Acordo Ortográfico de 1990, teremos agora sucessivas amputações, retirando aos que escrevem e falam português a possibilidade de se exprimirem livremente, uma vez que a “polícia do pensamento” estará vigilante.

Exagero?

Pois bem. Importa ter presente que estas medidas estão a ser implementadas noutros países, em estado mais avançado.

Em 2015, em França foi publicado um guia que propõe a eliminação da expressão “mademoiselle”, que significa jovem senhora, a ordenação por ordem alfabética de termos masculinos ou femininos idênticos, como seja “senhoras e senhores” ou “igualdade homem-mulher”, e sugere a substituição no nome da “Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789) por “Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos Cidadãos e das Cidadãs”. Em 2016, a Associação Médica Britânica publicou um guia que recomenda a substituição da expressão “mulher grávida” por “pessoa grávida”, para não ferir a susceptibilidade de “homens transgénero”. Em Julho de 2017, o Metro de Londres anunciou a substituição da saudação “damas e cavalheiros” por “olá a todos”, para ser mais inclusivo. No Canadá, foi aprovado neste mês a alteração da versão inglesa do hino nacional, pasme-se (!), em nome da igualdade de género.

Assim, depois de ter sido mutilada pelo Acordo Ortográfico de 1990, a língua portuguesa será agora amputada na sua riqueza vocabular e linguística, em nome de uma suposta igualdade de género, passando a ser um português mais neutro. A “novilíngua” portuguesa?

O autor escreve em português correcto, não reconhecendo o AO 1990.

* Engenheiro e gestor
Membro da TEM/CDS – Tendência Esperança em Movimento

[Transcrição integral de «A “novilíngua” portuguesa?», por Mário Cunha Reis, “Diário do Minho”, 25.02.18. Destaques meus. Imagem de topo de: livebyquotes.]

“Ao que parece”, o Brasil vai reverter “adoção” do AO90!

«O livro de José Carlos Gentili certamente ajudará a entender uma das principais controvérsias da grafia do Português depois do Acordo Ortográfico, se ele, de fato, continuar sendo aplicado no Brasil, pois, ao que parece, sua adoção poderá ser revista.»

 

Acórdão, acordão e acordo: sem hífen

A norma culta da língua portuguesa é conhecida por poucos no Brasil. Na escola, optam substituir a língua de Camões pela variante que os alunos já dominavam

Por Deonísio da Silva
Revista “Veja” (Brasil), 25 fev 2018, 13h58

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A norma culta da língua portuguesa é conhecida por poucos no Brasil. Na escola, optam substituir a língua de Camões pela variante que os alunos já dominavam.

Faz diferença você pedir um copo de leite ou um copo-de-leite. Sem hífen, receberá o recipiente com o líquido tão nutritivo. Com hífen, dar-lhe-ão ai, ai, ai, a mesóclise! uma flor.

A flor chamada copo-de-leite é conhecida também por outros nomes: palma-de-são-josé, açucena, flor-da-imperatriz, lírio-branco e lírio-encarnado, entre outras. Os índios denominavam urucatu e tuquirá algumas destas espécies. Os dicionários Aulete e Aurélio optaram por tuquira (sem acento), mas o Houaiss preferiu tuquirá (com acento).

Mas por que o hífen? Hífen é palavra que veio do Grego e passou pelo Latim, de onde chegou ao Português. Tem o significado de traço de união. Tanto que no Francês é trait d’ union, e no Italiano é trattino.

Os estudos sobre o hífen motivaram a concessão do Prêmio Antenor Nascentes, outorgado este ano pela Academia Brasileira de Filologia a José Carlos Gentili pelo livro ‘A infernização do hífen’.

A cerimônia de entrega deu-se na Embaixada de Portugal, em Brasília, na noite de quinta-feira passada, dia 22 de fevereiro, com um auditório lotado para prestigiar o romancista e filólogo que deixou o Rio Grande do Sul há várias décadas, radicando-se na capital federal.

José Carlos Gentili é o que podemos chamar de botânico e jardineiro da língua portuguesa, pois que é autor também de romances, contos e poemas, com destaque para a prosa de Lagoa dos Cavalos.

O livro que o premiou é um longo acervo de documentação sobre o hífen, este traço de união que tornou-se pomo de discórdia do Acordo Ortográfico, que, aliás, teve outro ponto alto de controvérsia na semana passada, em Portugal, como tem sido frequente ocorrer entre nossos irmãos portugueses que, entre os legados relevantes a nosso País e a outras nações lusófonas, deixaram um recurso poderoso de expressão, entretanto repleto de complexas sutilezas na hora da escrita.

Por que acontece isso? No caso do Brasil, por uma razão muito simples. Somos mais de duzentos milhões de falantes do Português, mas sua norma culta é conhecida por uma minoria. E o lugar onde ela deveria ser ensinada e aprendida tem-se tornado terreno minado, uma vez que, mesmo entre os que ensinam a disciplina, há quem defenda a substituição da língua de Camões, de Eça de Queiroz, do Padre Antônio Vieira e de Machado de Assis, entre outras referências solares de bem escrever, pela variante que os alunos já dominavam ao chegar à escola.

Provavelmente os idealizadores e executores do Acordo Ortográfico não esperavam tantas polêmicas. Em Portugal, uma das principais referências do Acordo Ortográfico é João Malaca Casteleiro, professor e pesquisador da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e membro da Academia das Ciências de Lisboa. No Brasil, um de seus livros mais apreciados é ‘A arte de mandar em português’, publicado pela Editora Lexikon, em que se ocupa das diversas formas de dar ordens em português, sem usar o modo imperativo, mas recorrendo a outros recursos em que o verbo aparece em outros modos.

No Brasil, a figura referencial do Acordo é o professor e linguista Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras, que sucedeu ao filólogo Antônio Houaiss na tarefa de coordenar os esforços pelo Acordo e cuidar de sua aplicação.

Era necessário um novo Acordo Ortográfico para a língua portuguesa? O Árabe tinha cerca de catorze grafias, foi unificado e tudo indica que os usuários das diversas variantes acharam a padronização necessária e agora utilizam o modelo sem a polêmica que nos acompanha na língua portuguesa há quase trinta anos.

O livro de José Carlos Gentili certamente ajudará a entender uma das principais controvérsias da grafia do Português depois do Acordo Ortográfico, se ele, de fato, continuar sendo aplicado no Brasil, pois, ao que parece, sua adoção poderá ser revista.

Ainda que isso pareça improvável, o Brasil jamais deixa de surpreender a si mesmo e ao mundo. Ou, na verve do humorista Apparício Torelly, o Barão de Itararé, “de onde menos se espera, dali é que não sai nada”.

*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

[Transcrição integral, respeitando a ortografia brasileira do original, de artigo com o título Acórdão, acordão e acordo: sem hífen , da autoria de Deonísio da Silva, publicado na revista “Veja” do Brasil em 25.02.18.]