«Pobre património» [António Barreto, “DN”]

A Sr.ª Presidente: — Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado António Barreto.
O Sr. António Barreto (PS): — Sr.ª Presidente, não é para fazer uma declaração de voto mas para anunciar à Mesa, ao Plenário e para que fique registado no ‘Diário’ que eu, o deputado António Braga e outros deputados do PS entregaremos por escrito na Mesa, o mais rapidamente possível, uma declaração de voto conjunta explicitando as razões por que votámos contra o acordo ortográfico.

Intervenção, V Legislatura – 4.ª Sessão Legislativa
Aprova, para ratificação, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
António Barreto (PS)
Reunião plenária de: 1991-06-04 [DAR I série N.º87/V/4 1991.06.05 (pág. 2872-2872)]”>DAR I série N.º 87/V/4 1991.06.05 (pág. 2872-2872)]

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DN_logoPobre património

António Barreto

“Diário de Notícias”, 30.08.16

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A discussão, sem fim, dura há dezenas de anos. Vai tendo, conforme os tempos, problemas e soluções diferentes. Que grau de prioridade deve ser atribuída à inventariação, à preservação, ao estudo e à divulgação do património edificado? Muito? Tudo de que precisa? Medianamente? Deixado ao mecenato privado? É mais importante do que as “artes vivas” ou “performativas”, como se diz agora? Mais ou menos importante do que a música, a literatura, a pintura, o cinema e a escultura? Dentro da área vastíssima da cultura e do ponto de vista das políticas públicas, o que é mais importante, o património erudito e a “alta cultura” ou as artes e tradições populares? A investigação é mais importante do que a divulgação? O estudo é mais urgente do que a disseminação popular e de massas?

A resposta mais fácil é aquela que está no espírito de muita gente. Tudo é urgente, tudo é prioritário, não se deve subestimar nenhuma área, todas as artes são importantes, todas as formas de cultura são decisivas, todas as manifestações do espírito são indispensáveis, o passado é tão importante quanto o presente e o futuro. São conhecidos esses argumentos. Que não servem para nada, a não ser alimentar a polémica e manter vivas as expectativas dos grupos de interesses.

A verdade é que é importante estabelecer prioridades a partir de vários critérios: a beleza, a raridade, a importância, o valor, o significado, o conhecimento, o contexto histórico, o custo, o perigo de deterioração, a ameaça de destruição, o risco de apropriação indevida… É difícil enumerar tudo. Mas o estabelecimento de prioridades tem de responder a muitos desses critérios. Até porque nunca há dinheiro para tudo.

A prioridade política deveria ser atribuída ao património histórico e cultural, nomeadamente o edificado. O estudo, a investigação e a preservação deveriam ser as actividades prioritárias. Certas áreas do património não deveriam nunca ser objecto de apropriação privada ou mercantil. O mecenato privado de carácter comercial e publicitário deveria ser uma faculdade acessória, discreta e condicionada, sendo privilegiado o investimento público. As universidades, as associações culturais, profissionais e científicas deveriam ser chamadas a colaborar. Os monumentos deveriam ser rigorosamente estudados, investigados, acompanhados e protegidos.

Entre a penúria pública e a ganância privada, muitos monumentos vegetam sem meios nem técnicos. Visitei recentemente alguns dos mais conhecidos: Mosteiro de Alcobaça, Convento de Cristo em Tomar, Convento de Mafra, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Igreja da Memória em Lisboa, Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Tomar, Igreja de São Vicente de Fora, Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, Aqueduto dos Pegões em Tomar… Em todos estes sítios, que sei serem alguns dos mais bem arranjados, detectei progressos enormes, em comparação com o que se via há trinta ou quarenta anos. Mais limpos, mais acessíveis, por vezes menos abandonados. Mas ainda hoje há faltas e falhas imperdoáveis! O pessoal técnico é insuficiente. Há miséria absoluta nas oficinas de restauro. É gritante a falta de verba, de meios e de técnicos de restauro e de conservação. É diminuta a formação técnica e cultural. São muitas as infiltrações nas paredes. Abundam a erva e arbustos nos telhados. Há, por todo o lado, azulejos caídos e janelas quebradas. Ainda se vêem alas inteiras arruinadas e claustros a caírem de podre. Quase todos carecem de indicações e sinalização suficientes. Há, por falta de condições de segurança, edifícios ou partes deles inacessíveis.

O que faz falta é enorme. Por isso deve ser prioridade, em detrimento dos esforços feitos para agradar a clientelas e à “intermediação eleitoral”. E em prejuízo do que “dá nas vistas”. Sabemos que os monumentos não votam. Mas as pedras podem um dia cair sobre quem não cumpre os seus deveres.

Source: Sem Emenda – Pobre património, “DN”, 30.08.16

«O provincianismo na Língua» [Manuel Monteiro, “Público”]

dicionario_erros«(…) “a língua é viva e rica” (assumindo-se um nexo de causalidade), tantas vezes proferido como um automatismo para dar as boas-vindas à pletora de palavras estrangeiras ou de palavras formadas com base noutras palavras estrangeiras. [E tantas vezes utilizado para aceitar que o erro vença pelo cansaço – consultem-se “perca”, “solarengo” (relativo a “solar” e não a sol) ou “brutal” – nos dicionários digitais. Ou para defender o absurdo Acordo Ortográfico.]»

O provincianismo na Língualogo_share

Manuel Matos Monteiro

Público”,  31.08.16

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Quanto mais palavras conhecemos, mais chaves de decifração da interioridade e do mundo exterior temos. A palavra corporiza e veste algo anterior a ela. Concretiza, arruma, torna cristalino o difuso, o vago.

Cada palavra é um ser inteiramente excepcional. Cada palavra tem a sua identidade única, a sua etimologia, a sua música, a sua eufonia (ou falta dela), o seu campo semântico e o seu campo lexical, a sua utilização ao longo da História pelos escreventes e pelos falantes e, claro está, pelos escritores, mormente pelos grandes (seria profícuo os dicionários terem citações de grandes escritores a acompanhar as palavras).

Há palavras que têm o mesmo significado ou, pelo menos, significados contíguos, mas ainda assim umas afiguram-se-nos mais gostáveis, apelativas e adequadas para descrever determinadas realidades. Acaso deveremos usar impensadamente “foleiro”, “saloio”, “boçal”, “parolo”, “grunho”, “bronco”, “labrego”, “energúmeno” (etimologicamente, possesso do Demónio)? Acaso seria indiferente a obra de Kafka chamar-se Mudança ou Transformação ou Alteração ou Mutação, em vez de Metamorfose? E palavras há que não têm sinonímia e para as quais a consulta dos dicionários não basta. Como entender/sentir o verbo “tantalizar” sem conhecer fundamente o suplício de Tântalo? Ou a “sublimação” depois de Freud sem o estudar? Há palavras, conceitos que expandem a mente, que permitem ler o que temos escrito dentro de nós, o Outro, o mundo – que criam aquilo que já existia. Como George Steiner explicou na conversa com Lobo Antunes (revista Ler): “Antes de Lolita, elas não existiam; depois do livro, estão em todas as esquinas. Ele criou o que já lá estava. E criar o que já existe é um milagre raro.”

Serve este maçudo intróito para seguidamente se combater o estafado lugar-comum (peço perdão por não usar “cliché”) de que “a língua é viva e rica” (assumindo-se um nexo de causalidade), tantas vezes proferido como um automatismo para dar as boas-vindas à pletora de palavras estrangeiras ou de palavras formadas com base noutras palavras estrangeiras. [E tantas vezes utilizado para aceitar que o erro vença pelo cansaço – consultem-se “perca”, “solarengo” (relativo a “solar” e não a sol) ou “brutal” – nos dicionários digitais. Ou para defender o absurdo Acordo Ortográfico.] Se reconhecemos ser um truísmo que tornar mais rico significa ter mais posses, saibamos ser mentira que acolhê-las enriqueça a língua. Sucede o contrário quando as acolhemos. São muito mais as palavras (portuguesas) que repelimos do uso corrente ante o deslumbramento provinciano que se rende aos pés da palavra com aroma estrangeiro, pelo que objectivamente a língua fica mais pobre e sem maleabilidade ou precisão para definir as realidades particulares.

Isto foi dito e redito por quem estudou a nossa língua, mas caiu nos baús do olvido. Agostinho de Campos, em Língua e Má Língua: “Esta lei económica [de a pior moeda expulsar a melhor] aplica-se, sem tirar nem pôr, à invasão de uma língua pelos estrangeirismos. Um só destes encasqueta-se na cabeça ou na medula dos macaqueadores ou dos papagaios – e fá-los esquecer inúmeras expressões nacionais – oiro de lei da sua língua de homens.” Vasco Botelho de Amaral, em Subtilezas, Máculas e Dificuldades da Língua Portuguesa: “Devo, por lealdade, registar aqui o que alguns altos espíritos da Província lusitana repetem em estafado disco: “Uma língua é um organismo vivo, em constante evolução. E os estrangeirismos vêm contribuir para a evolução da língua.” A esta genialidade muitas considerações se poderiam opor. Mas limito-me a observar que o nosso corpo também é um organismo vivo, em constante evolução; que, segundo os entendidos, o corpo que, porém, se não defende da nocividade dos vírus e das bactérias adoece, e pode morrer por isso; e também que, se perdem a resistência aos micróbios (ensina Carrel), os órgãos desenvolvem-se mal, e até fabricam venenos. Ora, paralelamente, pode afirmar-se que o “organismo” linguístico incapaz de se defender das extensas e intensas acções microbianas dos estrangeirismos cairá na desordem funcional e estrutural, isto é, na doença. A doença não deve combater-se?”

Perante cada palavra estrangeira ou formada com base numa palavra estrangeira, pergunte-se: “Acrescenta ela algum significado que não exista na nossa língua noutras palavras?” Se surge uma realidade nova, precisamos de uma palavra nova ou de uma anterior tomada de empréstimo. Antes de haver futebol, não poderia haver a palavra, o mesmo sucedendo com televisão ou piza. Mas antes de haver o francesismo “abajur”, existia já o “quebra-luz” (temos ainda “lucivelo”), que é exactamente o mesmo. O problema é o sem-número de palavras que nada acrescentam a palavras anteriores do nosso idioma.

Vejamos alguns exemplos de uma lista de milhares. Quem emprega hodiernamente “escol”, “gema”, “nata”, rendidos que estamos ao galicismo “elite”? Leia-se Fernando Pessoa, em O Provincianismo Português: “[A] camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.” Que aparece mais vezes na escrita e na oralidade: o galicismo “deboche” ou, mais portuguesmente, “impudicícia”, “devassidão”, “libertinagem”, “licenciosidade”? Silva Túlio, em Estudinhos da Língua Pátria, inventariou (peço perdão por não ter escrito “elencou”) dezasseis formas de português lídimo para o escusado e ubíquo galicismo “constatar”! Sabem os jornalistas que antes do moderninho anglicismo “evento” (saco em que cabe tudo) não se sentia falta de vocábulo para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos? Resultado: o afunilamento da língua e, com ele, o afunilamento do pensamento. A propósito de um vocábulo hoje muito na moda, recordemos Agostinho de Campos, em Língua e Má Língua: “Mas haverá talvez apenas uma forma ínfima e muito rudimentar de pensamento, naqueles que pensam escrever português pondo um “o” em “différend” para ficar “diferendo” […] Se isto é pensar, grande pensador será também o irmão Macaco” – para quê esta palavra quando temos “desacordo”, “desavença”, “desentendimento”, “divergência”, “discordância”, “dissensão”, “contenda”, “litígio”, “antagonismo”, entre tantas, tantas outras? Que acrescenta o francês nuance a “cambiante”, “matiz”, “subtileza”, “coloração”, “tonalidade”? Ou o omnipresente “complô” (quase sempre escrito em francês – complot –, até em dicionários!) a “conluio”, “maquinação”, “trama”, “conspiração”? Nada. Encontramos algum “caso de êxito” hoje? Nenhum. São todos “casos de sucesso”. O “êxito” foi vassourado.

E com este downsizing da língua, fazemos delete ao pensamento.

Manuel Matos Monteiro

Formador de Revisão de Textos, autor do Dicionário de Erros Frequentes da Língua

[“Público”,  31.08.16 (pág. 44). Imagem de topo de: Wook.]

Prémio Fundação Eça de Queiroz 2017

Source: Prémio FEQ Edição 2017 – Fundação Eça de Queiroz

A Fundação Eça de Queiroz (FEQ) declarou em tempos, na sua página do Facebook (conteúdo entretanto desaparecido) que «por decisão unânime da Administração da Fundação, não aplicamos o novo acordo ortográfico.»

Como podemos ver neste cartaz do concurso literário da FEQ para 2017, essa avisada decisão mantém-se.

Muito ao contrário de um outro prémio literário, já aqui referido, que foi instituído pela Imprensa Nacional Casa da Moeda para expressamente enxovalhar a memória do escritor Vasco Graça Moura, por um lado, e, em simultâneo, para tentar tomar por parvos todos aqueles que se opõem ao “acordo ortográfico”.

Na FEQ as pessoas sabem o que são direitos de autor, na INCM fingem desconhecer tal coisa.

Na FEQ há gente decente, honrada e com carácter, na INCM é a miséria que se vê.

Diz que «acordo regula formas de FALAR e escrever»…

Já vi, ouvi e li muita coisa sobre o AO90 mas esta é uma estreia absoluta: uma “Doutora em linguística” brasileira diz — e a peça jornalística reproduz — que “o acordo [ortográfico] regula as formas de falar e de escrever”.

Extraordinário.

Não que isso seja novidade, pois claro, já vamos ouvindo portugueses a dizer inúmeras palavras estropiadas pelo AO90 pronunciando-as claramente conforme as lêem, ou seja, tornando agora átona a vogal que anteriormente a consoante abatida tornava tónica: fatura, receção, batismo, arquiteta, etc.

Algumas pessoas, num tão bizarro quanto voluntário esforço para falar “à brasileira”, essa mítica (e absurda)  “língua universal”, vão ao ponto de eliminar administrativamente, na escrita e por consequência na fala, sequências consonânticas que o AO90 fez o favor de não abolir no Português-padrão:  de vez em quando alguém lá arrota postas de pescada como “contatar” e “contato” ou até “fato” e “fatualmente”, por exemplo.

Mas, ainda assim, mesmo que a realidade já seja esta apagada e vil tristeza, eu cá nunca tinha ouvido ou lido fosse quem fosse declarando — e de cátedra — que o AO90 “regula” não apenas a forma de escrever como a de… falar.

“Normatizar”, disse ela. “Padronizar a vida”, disse ela.

Crime, digo eu.

Raynice Silva destaca a importância do acordo ortográfico para padronizar a vida dos 260 mi de falantes do português (Foto: Euzivaldo Queiroz)

Encontro acadêmico discute as diferentes formas da língua portuguesa

28/08/2016 às 08:00

Isabelle Valois

Nesta última semana, mais de 1,2 mil pessoas participaram do 2º Encontro Amazonense de Professores de Línguas e Literaturas, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras

A língua portuguesa é nativa em sete países, onde é usada por 260 milhões de pessoas, sendo considerada a quinta mais falada no mundo e a terceira mais falada no Ocidente. Recentemente estes países fizeram um acordo ortográfico que a cada dia a deixa mais rica em novos detalhes. A forma escrita cobra mais as questões da gramática, mas, para muitos pesquisadores, a fala caminha por outro trilho, pois o importante é a compreensão.

Pesquisas apontam que cada falante conhece em média 16 mil itens lexicais – conjunto de palavras que são entendidas por si só – e são memorizadas por cada indivíduo. Conforme a doutora em linguística Raynice Pereira da Silva, não se contam só as palavras como itens lexicais, mas também a marcação de plural pra se dizer que está falando mais de um. “Quando falamos itens lexicais incluímos essas variações de acordo com as gerações. Muitas vezes palavras novas entram no léxico e há outras que ficam guardadas, mas não são usadas. Ao todo usamos esse 16 mil ou pelo menos temos esse conhecimento”, explicou Raynice.

Influências

O falante da língua portuguesa muitas vezes utiliza expressões, termos e palavras estrangeiras para facilitar o entendimento do assunto a se comunicar. “No português a gente tem muito desse empréstimo, principalmente após esse contato constante com as novas tecnologias”, disse.

Um dos termos utilizado como exemplo pela doutora em linguística é o “Twitter”. “Com as mídias digitais, hoje utilizamos muito a situação: vou tuítar. Essa palavra não existe na língua portuguesa, mas passou a existir como verbo e o adaptamos para a nossa gramática”, detalhou.

Sobre a relação com a linguagem utilizada na internet, a doutora acredita ser algo específico, em que muitas vezes é considerado como uma variação por se tratar de uma forma escrita.

“A fala tem muita variedade, o jeito de como falamos não é como se fala no Nordeste ou no Sul. A variedade na fala não causa estranhamento. O “internetês” se considera outra variação, mas dessa vez da modalidade escrita, mas ela varia pouco. A forma como escrevemos na internet com a ausência das vogais para se ganhar tempo se considera uma modalidade ”, informou Raynice.

Acordo regula formas de falar e escrever

Desde 2012 está em vigor o novo acordo ortográfico da língua portuguesa. Conforme a doutora Raynice Pereira da Silva, a ideia do acordo é facilitar a comunicação em todos países onde a língua é nativa. Antigamente só havia o acordo se todos os sete países aceitassem, mas agora a situação se encontra de forma diferente. Se a maioria concordar, se realiza o acordo.

É estipulado um tempo para que os falantes tenham um tempo para se adaptar com as novas ortografias e depois é colocado a validade para todos. Caso não se tenha uma adaptação pode ser adotado outra medida. “A língua vai mudando e com isso vai surgindo novas formas de escrita. A ideia é minimizar a língua escrita em comparação da fala, caso contrário os falantes falam de um jeito e escrevem de outro e acaba havendo problema, principalmente quando se vai utilizar nas escolas”, explicou. Para Raynice, o novo acordo é um processo contínuo de adaptação.

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«Uma visão curta da nossa história» [Renato Epifânio, “Público”]

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Arab slave traders and their captives along the Ruvuma River in Mozambique.

«Por fim, teria que questionar essa visão, tão ingénua quanto falsa, que apresenta África como um paraíso antes da chegada dos portugueses. É que o racismo e a escravatura não foram um exclusivo europeu, muito menos português — havia racismo e escravatura entre os africanos quando os portugueses lá chegaram.»

logo_shareUma visão curta da nossa história

Cartas à Directora – “Público”, 27.08.16

No dia 29 de Junho do corrente ano, realizou-se na SEDES: Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, um debate promovido pela PASC: Plataforma de Associações da Sociedade Civil – Casa da Cidadania, que o MIL integra, sobre as razões da nossa crise, presidido pelo General Garcia Leandro e que teve como principal orador Nuno Garoupa, até há pouco tempo Presidente do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos. No debate, tive a oportunidade de expor, ainda que de forma breve, uma convicção que cada vez mais tenho: a razão maior da situação a que Portugal chegou deve-se à crescente quebra do sentido comunitário entre os portugueses, à quebra de ligação com o próprio país, explicável, desde logo, por um enviesado (passe o eufemismo) auto-conhecimento histórico.

Aproveitando a presença de Nuno Garoupa, referi depois o exemplo da série de reportagens publicadas na altura no PÚBLICO, “Racismo em português: o lado esquecido do colonialismo”, da autoria de Joana Gorjão Henriques (JGH), precisamente como um contra-exemplo de como se deve promover o nosso auto-conhecimento histórico, manifestando até a minha perplexidade pela Fundação Francisco Manuel dos Santos ter patrocinado essa série. De forma elegante, Nuno Garoupa deu a entender (essa foi, pelo menos, a forma como entendi as suas palavras) que também não havia apreciado a série, mas que na altura já não havia nada a fazer, dado que havia contratos assinados a respeitar.

Manifestamente, esse não foi o caso de Diogo Ramada Curto (DRC), que no suplemento Ípsilon do mesmo jornal (19.08.2016, pp. 27-29), assina um longo panegírico à série de reportagens entretanto reunidas em livro, onde procura defender a visão da autora da acusação, que o próprio DRC verbaliza (o que por si é sintomático), de esta ser “uma visão parcial — por enfatizar unilateralmente o legado racista dos portugueses”. Acusação que, escusado seria dizê-lo, só peca por defeito. Com efeito, o que se diria, por exemplo, de uma visão da Grécia Antiga que fizesse da questão da escravatura (que também aí existiu) o alfa e o ómega? Decerto, não se diria apenas que era uma “visão parcial”. JGH, porém, pretende reduzir toda a nossa história da expansão marítima à câmara de horrores do tráfico de escravos, o que está muito para além da mera “parcialidade”.

Para ser imparcial, JGH teria desde logo que comparar a nossa colonização com as outras colonizações europeias. Por fim, teria que questionar essa visão, tão ingénua quanto falsa, que apresenta África como um paraíso antes da chegada dos portugueses. É que o racismo e a escravatura não foram um exclusivo europeu, muito menos português — havia racismo e escravatura entre os africanos quando os portugueses lá chegaram. Mas compreende-se que um facto tão banal como este seja escamoteado: ele por si só destrói a visão de JGH. Uma nota final: diz-se que a História serve também para nos fazer compreender o presente. Pois bem: à luz da visão de JGH, não se compreendem de todo as (singulares) relações de afectividade que existem entre os povos lusófonos. Se a visão de JGH fosse verdadeira, os povos colonizados pelos portugueses só poderiam ter por nós o maior ódio. Não é esse o caso — ou é?!

Renato Epifânio, Presidente do MIL (Movimento Internacional Lusófono)

Imagem de topo:
By Unknown – http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/details.php?categorynum=3&categoryName=&theRecord=2&recordCount=43
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