Pontapés de ressalto

Do fingimento à mais profunda hipocrisia: três histórias recentes

Como se revela o fingimento, intimamente ligado à mais profunda hipocrisia e falta de respeito pelo Outro? São três as histórias que contarei a esse propósito.

Convencer, é estéril.[1]
Foi um grande avanço no meu conhecimento, quando, pela primeira vez, a pobreza se me revelou na ignomínia do trabalho mal pago.[2]
Não se liam os livros de uma ponta à outra; habitávamos entre
as suas linhas.[3]
Walter Benjamin (1892, Berlim – 1940, Portbou)

Como se revela o fingimento, intimamente ligado à mais profunda hipocrisia e falta de respeito pelo Outro, situação a que também não é alheia a Cultura e o Saber? São três as histórias que contarei a esse propósito. A primeira tem como figura principal o Ministro da Educação, João Costa; a segunda, a Associação de Professores de Português (APP); e a terceira, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Alertou-me um amigo para o recente discurso do Ministro da Educação, João Costa, aquando da entrega do Prémio Saramago, ao escritor brasileiro Rafael Gallo, sessão que se deveria ter realizado em 2021, mas que devido à Covid foi adiada para 14 de Novembro de 2022. A primeira reacção foi a de surpresa perante o fingimento de João Costa ao elogiar e defender a Literatura e as Humanidades – “As grandes conquistas da humanidade não se fizeram com cálculos financeiros”, […]. “Precisamos mesmo dos humanistas e de quem estude humanidades para não deixarmos o mundo nas mãos de quem para tudo faz contas e de quem para tudo desumaniza”. […] “Uma desumanização que acontece, desde logo quando a arte, a literatura e a poesia estão ausentes.” (Lusa, 14.11.2022). Na verdade, são palavras que só revelam o seu carácter manipulador, actuando no intuito de convencer quem o ouve e, dizem as notícias, ter sido muito aplaudido. Espectáculo de um lobito com pele de cordeiro…

Foi a Reforma de 2003, cujo espírito perdura, e na qual o professor João Costa (Associação Portuguesa de Linguística – APL) interveio arduamente, em parceria com a APP, e depois no Ministério da Educação, que ditou o descrédito relativamente às Humanidades, situação que se tem vindo a prolongar até aos nossos dias, tendo dado azo ao esvaziamento de programas e à quase destruição das disciplinas de Filosofia, de Geografia, de História e obviamente de Português. João Costa, a par de muitos outros ministros da educação, tem sido efectivamente um fervoroso adepto do colapso das referidas matérias, mas agora tenta dar uma imagem contrária. Imitando, sem brilho, António Damásio que afirmou “A matemática e as ciências não fazem cidadãos”, na Conferência da Unesco, em Lisboa, (Março 2006), João Costa referiu no seu discurso que “As grandes conquistas da humanidade não se fizeram com cálculos financeiros”, aconselhando ainda, e fingidamente condoído, a “não deixarmos o mundo nas mãos de quem para tudo faz contas e de quem para tudo desumaniza”. Ter-se-á esquecido da perseguição que instaurou aos professores alterando o Regime de Mobilidade por Doença e das consequências daí advenientes? Nesse sentido, leia-se o artigo do Professor Santana Castilho (Público, 12/10/2022) e compreender-se-á o grau de hipocrisia de políticos como João Costa, numa actuação que apregoa invariavelmente os “direitos humanos” e o “bem público”.

No seu surpreendente discurso de dia 14 de Novembro p.p., repleto de frases vazias ou absurdas como a que transcrevemos – “A escolha das humanidades não precisa de justificação, da mesma maneira que a escolha pela poesia, pela literatura e pela arte não precisa de justificação” – lamentamos veementemente a triste sorte do Ensino entregue a gente deste calibre. Gente que pactuou com a sugestão de se retirar a Literatura dos programas de Português, tentando elevar a Linguística a matéria única e fazendo reinar o texto funcional; que pôs de parte, como sendo desmotivantes, os autores clássicos; que feriu o estudo dos que por conveniência tiveram de permanecer, somando-se decisões desastrosas como retirar da leitura de Os Lusíadas a “Dedicatória” porque, segundo colegas do Ministério, apoiando-se em argumentação APP, “os alunos faziam imensa confusão com o facto de Luís de Camões dedicar o poema ao rei D. Sebastião, narrando o poeta um evento acontecido no reinado de D. Manuel. Obrigá-los a decorar datas era desmotivante…” ou o episódio de “O Velho do Restelo” que, felizmente, grande número de professores continua a ler e a interpretar porque imprescindível para compreender o Humanismo, o mesmo Humanismo a que se refere o Ministro da Educação. Sem dúvida que é o Senhor Ministro “quem tem medo da democracia e da liberdade” e por isso também “dos escritores, dos poetas, da palavra e da arte”, palavras que igualmente proferiu no seu discurso. Explicar-lhe-ei mais em pormenor o porquê da minha afirmação.

Conhece certamente o teor dos exames ou das provas de aferição de Português, para adolescentes e crianças. Todos, sem excepção, superlativamente longos, repletos de páginas, a que se juntam diferentes textos para analisar, todos igualmente extensos, alguns dos quais com recurso a cruzinhas em que, por vezes, as várias hipóteses são puras ciladas. Junte-se-lhes uma avalancha estonteante de TLEBS e ainda a produção de textos. O senhor Ministro é contra os exames e eu sou a favor, mas eu sou totalmente crítica destas aberrações que impedem os alunos de tempo para pensar, de tempo para planear e organizar um texto escrito. A literatura e qualquer outra arte exige um diálogo com o que se lê, ouve ou olha e esse diálogo não pode ser impedido sob pena de se perder o contacto com o autor. Não será assim que se entusiasmará os alunos para a leitura e para a arte em geral. Na verdade, temos de “habitar” entre as linhas de um livro ou de uma pauta ou das cores. Porque adepto da rapidez, o senhor defende desde 2003 o funcional, se bem que inesperadamente na entrega deste prémio surja com um discurso enganador, mas tão facilmente desmontável. Dou-lhe conta de que não é com o funcional que “se formam cidadãos”, nem é com o funcional que se estimula a imaginação e a criatividade, sem as quais “não haveria evolução científica e tecnológica porque não haveria curiosidade”. (ainda António Damásio).

É por demais evidente que vivemos em democracia, e por alguma razão estou a escrever este artigo, mas sinto que, por influência de um passado opressivo, com estratégias várias de censura, se cai muitas vezes na tentação de impedir o outro de se exprimir livremente ou, ouvindo-o, pouco interesse se manifeste pelo que diz. Em 2003, e anos seguintes, senti intensamente que se estava apostado em criar cidadãos que não tivessem tempo para pensar e que só trabalhassem arduamente, obedecendo ao que se lhes exigia, acabando por se perder, no caso dos professores, o sentido de ensinar. O senhor ministro exemplifica bem esta perversidade: trabalhou com os seus alunos na TLEBS e impingiu-a aos professores e aos alunos, não admitindo críticas (tendo sido depois forçado a aceitá-las e a rever tanto “disparate” que, por infelicidade, permanece); elogia agora inesperadamente a Literatura, tendo sempre pugnado pelo funcional e os programas aí estão a testemunhá-lo; acusa a desumanidade, mas alterou o regime de mobilidade dos professores, tendo ainda lamentado em público o grande número de baixas entre os mesmos, pensando assim “ganhar a opinião pública” contra os professores, à semelhança de Maria de Lurdes Rodrigues. Senhor Ministro, não tente infantilmente convencer-nos das suas boas intenções. Será “estéril!”

A segunda história incide sobre a Associação de Professores de Português (APP) e a iniciativa de levar a uma reunião do IAVE o que considera ser a penalização dos alunos brasileiros nos exames, pelo uso da sua variante do português. Sem querer entrar nesta questão, porque seria matéria para um artigo, e desconhecendo se no Brasil aceitam que os alunos portugueses escrevam segundo a norma portuguesa, questiono a APP a propósito da defesa da aberrante “unificação ortográfica” que o acordo de 1990 traria, permitindo que as várias lusofonias espalhadas pelo mundo finalmente “se entendessem”, como se anteriormente isso não acontecesse. Afinal, a APP terá de concluir, engolindo um imenso sapo, que o acordo trouxe apenas desentendimento, penalização e caos, evidenciando simultaneamente uma imensa falta de respeito pela “diversidade das diversas lusofonias como património de uma comunidade de estados soberanos unidos por uma raiz histórica comum […].”[4]

Continue reading “Pontapés de ressalto”

Estatuto: 0.04714637346% de “igualdade”

Alguns dos Despachos emitidos nas últimas horas (no momento da execução deste “post”). “Click” na imagem para obter dados instantâneos e completos.

Critério de pesquisa: “estatuto de igualdade”

Retomando a questão do “post” anterior, em que o assunto é estreado: porque nunca foi referido e muito menos discutido este que é um Tratado internacional importantíssimo? E, a propósito: se o dito serviu de suporte “legal” aos subsequentes “acordos” (ou querem fingir que este nada tem a ver com o #AO90?), porque nunca foi sequer mencionado em qualquer deles? E ainda, ou em conclusão: estaremos perante um “segredo de Estado”?

Mas se esse “segredo” está à vista de toda a gente…

Ou, melhor dizendo, se esse “segredo” estivesse mesmo à vista de toda a gente, excepção feita aos próprios brasileiros, a quem o assunto exclusivamente interessa, às suas agências e serviços de emigração ou, em suma, aos profissionais do milieu.

Então, qual terá sido o motivo para que, ao longo de 22 anos, tamanha cortina de silêncio tenha escondido a existência de tão importante documento? Das diversas pesquisas que é possível executar nos vários “motores de busca”, apenas o serviço Bing (aliás, muito melhor do que o consagradíssimo Google) devolve alguns resultados consistentes… se bem que limitados igualmente a conteúdos brasileiros. E aos escritórios de advogados portugueses (ou sediados em Portugal) que já vão pipocando por aí, à cata de “renda fáciu” (rendimentos fáceis).

Para que portugueses e emigrantes de outras nacionalidades tomassem conhecimento do Tratado — e não custa nada imaginar que não iriam ficar lá muito contentes com a novidade — teriam necessariamente de saber (ou sequer imaginar) que semelhante coisa existe e então, a partir desse conhecimento básico, poderiam saber o que procurar, ao certo ou pouco mais ou menos.

Aliás, deverá ser com toda a certeza — e muito justamente — motivo de indignação que as prerrogativas previstas naquele leonino “contrato” sejam um exclusivo em absoluto reservado aos nascidos em determinada ex-colónia portuguesa, discriminando liminarmente angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses e timorenses.

Ora, como ninguém sabia absolutamente nada sobre o “direito de admissão” reservado a brasileiros, ninguém (de) fora do Brasil poderia ter pesquisado na Internet algo sobre “estatuto de igualdade” entre Portugal e Angola, Portugal e Moçambique, Portugal e Cabo Verde, Portugal e Guiné-Bissau, Portugal e São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor-Leste. Aos nascidos nessas outras — pelos vistos, menosprezáveis ou “menores” — ex-colónias portuguesas, apenas restaria contar com os diversos acordos parcelares (mais restritivos, evidentemente) firmados entre o país de cada um deles e a República Portuguesa.

De resto, o que a intoxicação social (vulgo, OCS) tem usado como arma de propaganda e como dispositivo de embotamento da realidade é constituído por encenações consecutivas, as acusações  de brasileiros sobre “preconceito, racismo e xenofobia” (1, 2, 3, 4, 5) de que alegam ser vítimas em Portugal, as queixas de estudantes brasileiros sobre as “tremendas” dificuldades que lhes são impostas pelos malvados profs tugas e todo um ror de maldades de que eles são vítimas, coitadinhos; ou seja, e nisso temos de reconhecer-lhes alguma maestria, a habitual vitimização como arma política (1, 2, 3).

O Estatuto de Igualdade é um Tratado, nos termos da Convenção de Viena. Foi «feito em Porto Seguro, aos 22 dias do mês de Abril do ano de 2000», foi assinado «pelo Governo da República Federativa do Brasil, Luiz Felipe Lampreia, Ministro de Estado das Relações Exteriores» e «pelo Governo da República Portuguesa, Jaime José Matos da Gama, Ministro dos Negócios Estrangeiros», e foi publicado no “Diário da República” n.º 287, de 14 de Dezembro de 2000.

Segundo dados da CIA (Central Intelligence Agency), o Brasil tem 217,240,060 habitantes  enquanto que Portugal conta com apenas 10,242,081 alminhas. O que significa, portanto, que este Tratado de “igualdade” vale para 22 brasileiros tanto como vale para 1 único português, o que é “ligeiramente” desproporcional: por hipótese académica (e algébrica), poderíamos enviar para lá 1 milhão de emigrantes e, “em troca”, à conta desses, eles mandavam-nos 22 milhões de gente. Deve obedecer a esta “lógica” a mais recente campanha de desinformação governamental orquestrando as estatísticas demográficas. Que precisamos de importar indivíduos em massa, diz a propaganda, por causa do saldo (de quê, dizem, de quem, já não), por causa da pirâmide etária, “derivado” às contas entre reformados e pessoal no mercado de trabalho, umas lindezas assim.

“Ah, e tal”, dirão os do costume e como de costume, já formatados até ao cerebelo, mas é que “eles” são um país-continente e Portugal é uma caganita (sim, é usando esta asquerosa analogia que alguns tugas se referem ao seu próprio país), “partantes” eles têm vinte vezes mais direitos do que “a” nós.

Bom, mesmo que assim fosse, mais uma hipótese académica, se bem que igualmente latrinária, então e a quantos portugueses no Brasil foi concedido pelo governo brasileiro o mesmíssimo “estatuto de igualdade”? 100? 50? 20? 1? Mistério. Outro  Mistério dos Negócios Estrangeiros.

E, já agora, em que “site” do Governo brasileiro está uma cópia do “novo” Tratado com 22 anos? Deve ter sido lapso meu, do qual desde já me penalizo — com alguma comoção, confesso –, mas na verdade o que encontrei nos mais diversos endereços “.br” foi o outro Tratado, o assinado nos tempos de outro Marcelo, o de 1972. Em cuja “ficha técnica”, aliás, está escarrapachado que «Não consta revogação expressa».

Mas deve ser confusão minha, realmente. Há uma data de… datas que não coincidem.

Lá terei de investigar tudo outra vez, a ver se não escapou nadinha.

Talvez o Estatuto de Igualdade de 1972 seja diferente do Estatuto de Igualdade de 1971.

Talvez a publicidade ao “cartão de cidadão” português em sites brasileiros não tenha nada a ver com isto.

Talvez entrementes Portugal tenha saído da União Europeia e também isso não tenha nada a ver.

Ah, pois é, o Mundial. Vivó Mundial. A bola é que está a dar. Esta xaropada não interessa nem ao menino Jesus.

[Imagens de: “Bing” (intermédia) e “O Jogo” (rodapé)]

Abril, ano 2000: “Estatuto de Igualdade”

“Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta Entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil”. Ou, abreviando, “Estatuto de Igualdade”. Foi assinado a 22 de Abril do já longínquo ano 2000 este Tratado entre dois dos oito Estados que integram a CPLP (fundada quatro antes, a 17 de Julho de 1996), nele se determinando, teoricamente, uma suposta igualdade de direitos políticos, civis, económicos, académicos, laborais, empresariais ou de qualquer outra ordem entre 215 milhões de brasileiros e 10 milhões de portugueses; o que a priori suscita não uma mas diversas interrogações e outras tantas perplexidades.

Mesmo que nos abstraiamos da enorme desproporção entre as partes e, por consequência, da bizarra equidade entre custos (para Portugal) e benefícios (para o Brasil), a primeira interrogação que este outro “acordo” suscita será, com certeza, mesmo para os mais “distraídos”, a seguinte: como é possível que ao longo de quase 23 anos absolutamente nada disto tenha sido sequer mencionado, fosse por que meio ou por quem fosse?

QUEM PODE PEDIR O ESTATUTO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES PARA CIDADÃO BRASILEIRO RESIDENTE EM PORTUGAL?
Qualquer cidadão de nacionalidade brasileira, maior de idade, residente em Portugal com Título de Residência válido.
QUANDO SE PODE PEDIR O ESTATUTO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES PARA CIDADÃO BRASILEIRO RESIDENTE EM PORTUGAL?
O Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres pode ser pedido a qualquer momento desde que estejam reunidos os documentos e requisitos para o fazer.
ONDE SE PODE PEDIR O ESTATUTO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES PARA CIDADÃO BRASILEIRO RESIDENTE EM PORTUGAL?
O requerimento pode ser entregue nos balcões de atendimento do SEF nas Delegações ou Direções Regionais do SEF, mediante marcação prévia;
Pode igualmente ser enviado por correio para os Serviços Centrais do SEF, acompanhado dos documentos necessários.
QUAIS OS DOCUMENTOS E REQUISITOS PARA PEDIR O ESTATUTO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES PARA CIDADÃO BRASILEIRO RESIDENTE EM PORTUGAL?

Documentos:
Fotocópia do Título de Residência.
Certificado de Nacionalidade (original e fotocópia) emitido pelo Consulado do Brasil, atestando que o cidadão não se encontra impedido de exercer os seus direitos civis.
Requerimento de Direitos e Deveres impresso e devidamente preenchido.

QUAL O PRAZO PARA PEDIR O ESTATUTO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES PARA CIDADÃO BRASILEIRO RESIDENTE EM PORTUGAL?
Este Estatuto não tem prazo de validade, podendo apenas ser extinto por caducidade ou cancelamento da Autorização de Residência ou pela perda de nacionalidade brasileira.
COMO SE PODE PEDIR O ESTATUTO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES PARA CIDADÃO BRASILEIRO RESIDENTE EM PORTUGAL?
Nos balcões de atendimento do SEF nas Delegações ou Direções Regionais do SEF, mediante marcação prévia, o pedido pode ser feito entregando o requerimento e os documentos necessários.
Por correio, para os Serviços Centrais do SEF, o pedido pode ser feito através do envio do requerimento e dos documentos necessários.
QUAL A LEGISLAÇÃO DE SUPORTE?
  1. Aprova o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro em 22 de abril de 2000.
  2. Ratifica o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro em 22 de abril de 2000.
  3. Regulamenta a aplicação do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro em 22 de abril de 2000, no que respeita ao regime processual de atribuição e registo do estatuto de igualdade aos cidadãos brasileiros residentes em Portugal e aos cidadãos portugueses residentes no Brasil.

ENTIDADE RESPONSÁVEL POR ESTE SERVIÇO:
SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

Logotipo Pedir o Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres para cidadão brasileiro residente em Portugal - ePortugal.gov.pt

De facto, não apenas não existem quaisquer referências ao assunto, nem na imprensa, oficial ou oficiosa, nem por meios — formais ou mesmo informais — televisivos, radiofónicos ou cibernéticos.

E não será por mero acaso que o silêncio absoluto a respeito daquilo que é um Tratado internacional, nada menos, contamina não apenas os meios de comunicação social e os areópagos políticos, como também foram durante 22 anos omitidas quaisquer referências, por mais vagas que fossem, em todos os subsequentes passos da golpada:

  1. Declaração de Brasília (2002)
  2. Resolução CPLP “3 por 8” (2002)
  3. II Protocolo Modificativo (2004)
  4. “ratificação” do #AO90 (Brasil-2004, São Tomé-2005, Cabo Verde-2006)
  5. revisão dos estatutos da CPLP (2007)
  6. RAR 35/2008
  7. Decreto PR 52/2008
  8. Aviso MNE 255/2010
  9. RCM 8/2011
  10. Acordo de Mobilidade CPLP (2021)

Além de muitos outros documentos uni, bi e multilaterais assinados, emitidos e subscritos pelas mais diversas entidades, desde o Presidente da República (de Cavaco a Marcelo) ao Primeiro-Ministro (de Sócrates a Costa), passando por qualquer dos 230 deputados da nação — nunca, jamais, em tempo algum qualquer deles sequer aludiu a este Tratado. Nem um texto, uma referência, uma alusão, um só comentário, no grupo dos mudos e quedos se incluindo académicos, intelectuais, jornalistas e “figuras públicas”, sobre o documento ou quanto àquilo que significa, por exemplo, a designação “estatuto de igualdade”. Nada. Absolutamente nada.

Ora, se não existe em lado algum a mais ínfima referência ao assunto, tal e tão surpreendente bloqueio dever-se-á a quê? Puro desconhecimento? E porquê semelhante ignorância, então, se Portugal não assina tratados todos os dias nem todos os meses nem todos os anos e nem mesmo em todas as décadas ou até ao longo de séculos?

Ninguém saberia mesmo disto? Será possível? E ninguém quis saber? A sério? Ou estão a  brincar? Com quem? E quem são os brincalhões, afinal?

Bem, veremos.

Lula da Silva, “doutor” Honoris causa pela Universidade de Coimbra (2011)

Não sabe? Devia saber.

Dizer isto é elitismo e sobranceria? Talvez. Mas tenho por mim a memória de Medeiros Ferreira e um seu momento numa entrevista em que falou do “nó górdio”, e a jornalista perguntou-lhe o que era. Medeiros Ferreira irritou-se e respondeu: “Se não sabe, devia saber…”
[Pacheco Pereira, «Acordo Ortográfico só subsiste pela inércia cultural da ignorância», 02.07.22]

Os alunos de língua portuguesa e a língua portuguesa

Francisco Miguel Valada
www.publico.pt, 16.11.22

“Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessárias tantas filosofias. – Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos.” Eça de Queiroz, Os Maias

O dilema de João Rodrigues, professor na Escola Secundária Rainha Dona Amélia, em Lisboa, relatado há uns meses no PÚBLICO, serve de mote para as três considerações que aqui trago. Queixava-se então Rodrigues de ter tido de penalizar alunos brasileiros em respostas escritas na “variante brasileira de português” que não correspondiam à “norma do padrão do português europeu”. Acrescentava o professor de Português que era revoltante ter de penalizar alunos, quando a expressão sintáctica estava correcta na variante brasileira. Por fim, Rodrigues confessava-se revoltado, sentindo também que estava a prejudicar e a discriminar os alunos. Convém que este testemunho sincero e concreto seja levado muito a sério por quem tem andado há muito tempo a dormir na forma com ilusões e a tapar o sol com uma peneira de abstracções.

Há uns anos, apresentei uma comunicação na Universidade de Évora, na qual mostrei e analisei diferenças lexicais, fonológicas, fonéticas e morfossintácticas entre o português europeu e o português do Brasil. Uma das críticas que me fizeram – e que imediatamente aceitei e reconheci – foi a de ter misturado (adrede, acrescento) registos formais e informais, isto é, pus na mesma panela alguns (poucos, acrescento) registos que seriam utilizados em sala de aula e registos meramente coloquiais. Respondi que o fizera intencionalmente, para suscitar o debate, mas agradeci a reprimenda e, felizmente, aprendi imenso com ela. Por esse motivo, trago-vos hoje as tais três considerações. Obviamente, apresento-as, partindo do princípio de que o Governo português, de facto, quer resolver este problema: de uma vez por todas.

A primeira consideração diz respeito à vontade política de resolver problemas. Esta vontade política inclui o doloroso reconhecimento de haver diferenças entre os vários portugueses que são falados no espaço lusófono. Quanto à dimensão e importância da diferença, reservo o debate para outros fora. No entanto, já que estudos académicos e exemplos do quotidiano sobre este assunto não interessam aos políticos portugueses, as legítimas queixas de alunos brasileiros a estudar em Portugal poderão servir como indicação de que algo deve ser reconhecido e resolvido.

A segunda consideração relaciona-se com a formação dos professores. Se, efectivamente, o Governo português quiser resolver o problema e, como sugere o Instituto de Avaliação Educativa (Iave), “abordar as variedades da língua portuguesa ‘no âmbito das aulas de Português’”, a solução é simples: deve dar-se formação aos professores das disciplinas em que, actualmente, a adopção da norma portuguesa europeia é obrigatória, para que estes possam avaliar correctamente o desempenho dos alunos falantes nativos dos vários portugueses que são falados em todo o espaço lusófono. Isto implica bastante tempo e, é claro, algum dinheiro. Mas também é nestes momentos que vemos a diferença entre a garganta (o discurso político) e o porta-moedas (o Orçamento do Estado).

A terceira e última consideração tem a ver com a reciprocidade. Nenhuma – repito, nenhuma – das minhas duas anteriores considerações terá qualquer validade se não houver medidas idênticas (ou semelhantes) tomadas por quem governa os outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Isto é, os alunos portugueses que estudarem nos outros países da CPLP deverão dispor exactamente das mesmas condições que os alunos de outros países da CPLP terão em Portugal, no âmbito das minhas primeira e segunda considerações.

A penalização de alunos, nestas condições, é de facto um problema extremamente grave e convém que a resolução seja rápida. Aproveito o ensejo para recomendar o seguinte ao actor político que executar estas minhas considerações/recomendações: pegue no Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e deite-o fora. Ponha-o no caixote do lixo. É justamente por causa do logro da “unidade essencial da língua portuguesa”, conceito consagrado no AO90, que chegámos a esta situação ridícula e muito grave. Matemos dois coelhos de uma cajadada só e andemos para a frente. Avancemos.

  1. «quem tem andado há muito tempo a dormir na forma com ilusões e a tapar o sol com uma peneira de abstracções»
    Tornou-se irrelevante — e até contraproducente, na situação actual — qualquer abordagem tanto pelo “lado” jurídico como pelo da ortografia. Enquanto se entretêm com enormes listas de “aberrações” e de “casos flagrantes” que teoricamente seriam “corrigíveis” e depois de uma série de “petições” completamente (porque muito previsivelmente) inúteis, o alegre  grupo de adeptos da “revisão” vai desopilando seus honoráveis fígados em… inutilidades absolutas. [Egipto em brasileiro e a cuestão légau – 11 Novembro 2022]
  2. «partindo do princípio de que o Governo português, de facto, quer resolver este problema»
    Este aparente conflito resultante da aculturação selvagem deixará de o ser de imediato, como que por milagre, com o estalar de dedos do costume — ou seja, via “orientações” internas da tutela, na secretaria da 24 de Julho, e de seguida com a consagração legal na respectiva linha de montagem, a São Bento. [A vitimização como arma política (2) – 03 Agosto 2022]
  3. «vontade política de resolver problemas»
    quanto mais abundante e espectacular for o coro de lamúrias a que os media dão cobertura, mais “generoso” será o “pacote” legislativo que a carimbadela parlamentar transformará de imediato em lei. Este imutável, repetitivo, geralmente encenado e sistematicamente rapidíssimo processo de vitimização-legislação, num país em que é “normal” que uma simples Proposta de Lei fique congelada durante mais de três anos até que finalmente não obtenha resposta, é um indicador seguro do enquadramento político (logo, económico) em que se insere desde 1986 o processo de demolição linguística e cultural em curso. [A vitimização como arma política (1) –  1 Agosto 2022]
  4. «diferenças entre os vários portugueses que são falados no espaço lusófono»
    A pretensa “língua unificada” (a brasileira, claro) que teoricamente o justificaria serve como a camuflagem perfeita para a imposição selvática a Portugal (e PALOP) de uma língua alienígena — em todas as suas partes constituintes, não apenas numa única categoria gramatical — e para o esmagamento sumário, por arrastamento ou inerência, de todo e qualquer resquício da identidade nacional… portuguesa. [A vitimização como arma política (2) – 03 Agosto 2022]
  5. «legítimas queixas de alunos brasileiros a estudar em Portugal»
    É miserável mas não deixa de ser caricato o que vai sucedendo, por exemplo paradigmático, no assim dito “sistema de Ensino” indígena: evidentemente, visto que “eles são 230 milhões e nós somos só 10 milhões”, então há que — além de escrever como “eles” falam — “facilitar” e “agilizar” também o percurso académico “deles” (e só deles, para os alunos portugueses fica tudo na mesma), aceitando que escrevam como falam (ou como de resto lhes der na real gana). [A vitimização como arma política (2) – 03 Março 2022]
  6. «os alunos portugueses que estudarem nos outros países da CPLP deverão dispor exactamente das mesmas condições que os alunos de outros países da CPLP terão em Portugal»
    Ao contrário do que sucede com as artimanhas dos políticos, os números não mentem. O “português” do AO90 é afinal, literalmente e na íntegra, a língua brasileira. Todo o léxico foi 100% adulterado consoante a cacografia brasileira, sem qualquer “concessão” ou “cedência”; a outra parte do “acordo” (Portugal e PALOP) cedeu em absolutamente tudo: não existe no AO90 uma única palavra cuja grafia tenha sido imposta ao Brasil conforme é grafada em Português-padrão. [“Spelling Bee” – 10 Julho 2021]
  7. «É justamente por causa do logro da “unidade essencial da língua portuguesa”, conceito consagrado no AO90, que chegámos a esta situação ridícula e muito grave.»
    Os tugas que vergam a cerviz até ao chão, os que apreciam andar de rojo e à babujem, os traidores, vendidos e mercenários pretendem tão-só aproveitar as sobras dos “negócios estrangeiros” brasileiros, a sua “expansão” neo-imperialista, a “difusão” da CPLB, o “valor económico da língua“… brasileira. Daí o #AO90, daí a CPLB, daí a “porta dos fundos” para a UE, daí o assalto às ex-colónias portuguesas em África e na Ásia. [O Português é língua estrangeira no Brasil – 29/10/2022]
Alexandre desata o nó górdio, pintura de Fedele Fischetti DR (“Público”, 02.07.22)

Egipto em brasileiro e a cuestão légau

«A arquitetura do velho Egito é caracterizado pela sua monumentalidade. Entre as construções mais importantes estão as pirâmides e templos. Neste artigo, falamos sobre as generalidades deste modelo de construção e as principais obras arquitetônicas dos egípcios.» [“Astelus” (Brasil). Transcrição do original em brasileiro.]

Contagem de ocorrências – sequências consonânticas (recorte) [página O AO90 em Números-resultados]

Trata-se, a julgar pela recorrência das “alegações”, de uma impossibilidade técnica: por mais que se insista no carácter exclusivamente político-económico do #AO90, mais se fala de… ortografia! O “acordo ortográfico” não é acordo algum — porque o conceito implica cedências de ambas as partes, não apenas de uma delas — e não tem absolutamente nada de ortográfico, dado que as suas finalidades, as expressas e as implícitas, têm o objectivo único de privilegiar os interesses geoestratégicos do “gigante” brasileiro.

Se por mero acaso a alguém ocorre escapar, ainda que apenas por momentos e para variar, à “lógica” do tiro ao “egício” em particular ou ao “impato” em geral, então será provavelmente para tecer considerações igualmente “asséticas” sobre a “inadatação” “fatual” da data de entrada em vigor do AO90, sobre o “fato” de não haver uma lei (mas tem de ter a designação de “lei”, se for outra coisa não vale) de aplicação compulsiva do estropício na administração pública ou ainda, outro tema algo divertido, se bem que igualmente ocioso, sobre o “registro” legal da revogação expressa do AO45.

Quanto às pretensas questões legais envolvidas será suficiente ver, no quadro negro, a “hierarquia das leis”: no caso, a golpada em vigor foi executada através da tramitação da Proposta de Resolução 71/X, que deu origem à RAR 35/2008 (aprovação do 2.º Protocolo Modificativo) e esta serviu como respaldo político para que fosse parida a RCM 8/2011 – o que implicou a entrada em vigor do AO90 na função pública e em todos os organismos na dependência (directa, indirecta, sub-reptícia ou até secreta) do Estado.***

Pela inexistência de diploma, cláusula ou disposição revogatória, bastará formular em suma os respectivos preceitos jurídicos: «revogar uma lei é fazê-la perder a vigência, ou porque foi substituída por outra lei ou porque perdeu sua validade no decurso do tempo»; a revogação pode ocorrer de forma explícita, mas também por anulação, substituição ou caducidade — tácitas ou implícitas.

Algo de semelhante vale para o próprio Direito dos Tratados, aliás. Nos termos da Convenção de Viena, a subscrição dos Estados contratantes pode ocorrer por unanimidade, por maioria de dois terços ou… de outra forma, desde que os ditos Estados assim convencionem: «The adoption of the text of a treaty at an international conference takes place by the vote of two thirds of the States present and voting, unless by the same majority they shall decide to apply a different rule.»

As questões e contorções legais não são, de todo, decisivas no que concerne ao AO90. E ainda menos fundamentais serão as pretensas questões técnicas envolvidas. Tornou-se irrelevante — e até contraproducente, na situação actual — qualquer abordagem tanto pelo “lado” jurídico como pelo da ortografia. Enquanto se entretêm com enormes listas de “aberrações” e de “casos flagrantes” que teoricamente seriam “corrigíveis” e depois de uma série de “petições” completamente (porque muito previsivelmente) inúteis, o alegre  grupo de adeptos da “revisão” vai desopilando seus honoráveis fígados em… inutilidades absolutas. Das quais apenas resulta, na muito exígua opinião pública à qual o assunto interessa minimamente, aquilo que os acordistas sempre pretenderam: cansaço, exaustão e, por conseguinte, alheamento, indiferença.

O AO90 continuaria absolutamente incólume, enquanto instrumento político, ainda que os acordistas fingissem ceder fosse (n)o que fosse. Não será por os demais membros da CPLB (Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé, Guiné-Bissau e Timor-Leste) acabarem por determinar a entrada em vigor daquilo nos seus territórios que esse mesmo “aquilo” passará a ter alguma coisa a ver com a Língua Portuguesa.

Não será à força de petições (ou “ideias” ainda mais peregrinas, como o referendo) que os deputados da nação alguma vez reconhecerão que nem sabiam o que era “aquilo” que aprovaram. E, evidentemente, jamais algum político admitirá que o “acordo” é plano de saque e esquema de negócios, a pretexto do  “valor económico“ e da “expansão da língua” brasileira.

Não será por mera ingenuidade, por exemplo acreditando que a lei das iniciativas de cidadãos (ILC) vale ou serve para alguma coisa, que a frente de luta se desviará um milímetro do seu elemento natural, isto é, a arena política. Aliás, quanto a esta iniciativa em particular devo penalizar-me pessoal e exclusivamente: o ingénuo fui eu mesmo. Alego em minha defesa, porém, quanto a este particular, o facto de jamais ter sequer imaginado que seria possível que uma lei da República Portuguesa não passe afinal de uma farsa abominável.

Não será por “reaver” os “pês mudos” das “receções“, das “conceções“, dos “egícios” e dos “réteis“, mai-los “cês caladinhos” nos “conetores” e nos “inteletuais“, por exemplo, não seria por isso que a coisa ficaria logo nos conformes, a aldrabice deixaria de ser tremenda vigarice, o “acordo” deixaria de funcionar como pretexto para a “expansão” brasileira, a Língua Portuguesa deixaria de ser metodicamente destruída.

A exposição do cAOs teve o seu tempo e fez todo o sentido, sim, mas só até determinada altura. O ponto de viragem, aquilo que transformou o que até então era útil e curial em algo sumamente pernicioso, porque contraproducente, foi… a simples passagem do tempo. Ou seja, não existiu propriamente uma barreira temporal, mas o mais simples bom senso — se matraquear exemplos não resultou durante anos e anos, para quê persistir na inutilidade? — poderia e deveria ter ao menos poupado à causa um nada despiciendo número de desistências por exaustão.

Já vai sendo tempo de aprender alguma coisinha com os próprios erros. Até porque os erros dos outros não convencem ninguém. E a putativa CTR (Comissão de Revisão Técnica) tem os seus próprios assalariados, portanto convinha não trabalhar para eles à borla. Nem a peso de ouro.

Se o Egipto não existe, para quê insistir na egiptologia?

Eliminada a grafia Egipto e identificado o Egito como singelo lugarejo algures no Atlântico, não se percebe aonde foi António Costa nem de onde vêm faraós e múmias.

Nuno Pacheco
“Público”, 10.11.22

“Faraós, pirâmides e múmias são sempre um tema apaixonante, daí que tantas vezes a ele voltemos. Por artes do acaso, coincidem nestes dias dois acontecimentos relacionados com o país dos faraós e das pirâmides. Um deles é ‘Faraós Superstars’. Que, ao contrário do que o título possa dar a entender, não é uma série televisiva, mas uma exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, com inauguração marcada para 25 de Novembro, onde permanecerá até ao dia 6 de Março de 2023. O outro, de maior relevância para o planeta, é a Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP27), que começou no domingo e se estenderá até 18 de Novembro em Sharm el-Sheik, cidade egípcia.

E aqui começa a discrepância. Segundo o Acordo Ortográfico de 1990, impingido em 2010 a troco de nada, os faraós egípcios são os do Egito e ponto final. A conferência da ONU, idem. Aliás, a palavra Egipto foi meticulosamente banida do léxico a uso pelos tutores da grafia “oficial”. Daí que a Gulbenkian, há anos zelosa cumpridora da dita ortografia nova, fale no comunicado que anuncia a exposição em “Egito contemporâneo” e “Egito Antigo”, registando coisas como “imaginário coletivo”, “atualmente”, “coleções”, “atividades” ou “estações táteis”, enquanto nos chama a atenção para a “arte egípcia”, referindo “antiguidades egípcias” ou mencionando o célebre “egiptólogo britânico” que há cem anos descobriu o túmulo de Tutankhamon no Vale dos Reis. Já o Governo, provavelmente mais distraído, emitiu um comunicado oficial intitulado “Primeiro-ministro desloca-se a Sharm el-Sheik, no Egipto, por ocasião da COP 27”, que começa logo na primeira linha por anunciar uma absoluta impossibilidade: “O primeiro-ministro desloca-se ao Egipto.” Ora como pode o primeiro-ministro de um país que existe deslocar-se a um país que não existe? Não pode.

Quem tiver dúvidas consulte a “bíblia” do “acordismo” lusófono, o Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa do IILP, e terá como resposta esta afirmação categórica: “A forma Egipto não se encontra atestada neste vocabulário.” De nada serve saltar de bandeirinhas (há uma para cada país, com diferentes vocabulários, a “unificação” é só lirismo), pois a resposta é sempre a mesma. O mais surpreendente é quando, já prestes a desistir, procuramos a palavra “Egito”. Aparece logo. Um país? Não, um lugar na Calheta (ilha de São Jorge, Açores), a remeter para o Vocabulário Toponímico.

Portanto, eliminado o Egipto e identificado o Egito como singelo lugarejo algures no Atlântico, não se percebe aonde foi António Costa nem de onde vêm faraós e múmias, a não ser por artes de uma qualquer ‘twilight zone’. Pior ainda (tal é o poder da ortografia!), não se percebe de onde continuam a vir palavras como “egípcio”, “egiptólogo”, “egiptologia”, “egiptológico”, “egipcíaco”, “egiptano”, todas abençoadas pelo IILP (que, no entanto, ignora “egiptização” ou “egiptanense”). Um mistério digno do Vale dos Reis, se não viesse antes do vale-tudo dos mentores e crédulos no disparate.

O assunto Egipto versus Egito já foi aqui abordado há cinco anos, em crónicas como “Pirâmides, futebóis e ortografia” (26/1/2017) ou “Sabiam que Cleópatra era de Idanha-a-Velha?” (13/7/2017), mas o tema em si mostra-se inesgotável, até porque a simples queda de uma letrinha (o P de Egipto) deu azo a muita tolice pseudomoderna, como o surgimento de “egícios”. Um questionário escolar em linha, destinado ao 8.º ano e já retirado, tinha como item de resposta múltipla esta frase: “A Itália foi o berço do Império Egício.” O jornal ‘Record’ (colecciono pacientemente estes recortes, que muitas vezes me chegam à mão devido a olhares atentos) anunciou “um grande dérbi egício”; a Euronews falou em Mubarak como “ex-presidente egício”; a RTPN em “bloqueios egício e israelita”; a Lusa em “capital egícia”, referindo-se ao Cairo; o ‘JN’ assinalou um desastre “no espaço aéreo egício”; uma criatura no Tripadvisor viu “um obelisco egício na Praça do Popolo”, em Roma; e o Mundo ao Minuto chegou a noticiar “um morto em confrontos entre estudantes egícios e polícia. [sic]”. Até o governo anterior, em comunicado, misturou “Egito” com “Egipto”, talvez na esperança de acertar.

No resto da Europa, não há estes problemas. Se usarem o tradutor do Google, verão que Egipto se escreve assim em espanhol ou basco (como se escrevia em Portugal), mantendo o P noutros idiomas: Egypt (inglês, norueguês, checo), Egypte (francês, holandês), Egipte (catalão), Exipto (galego), Ägypten (alemão, luxemburguês), Egipt (polaco, romeno, esloveno), Egyiptom (húngaro), etc. Mas se tentarem “traduzir” Egipto para português, teremos… Egito. Um bom tema para “egitólogos.”

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Nuno Pacheco, publicado no jornal “Público” de 10.11.22. Imagem de topo de: “Astelus” (Brasil). Quadro de hierarquia das leis copiado de página Facebook. ]

*** Nota: sobre a RCM 8/2011, há também alguns cromos (a caderneta está cheia) que garantem ser aquilo o busílis da questão, ou seja, que anulando-a (uma RCM não é revogável, é anulável por outra ou é simplesmente ignorada) o “acordo” deixaria automaticamente de estar em vigor. Pois claro que não. A RCM é consequência da RAR — até porque nesta se baseia expressamente –, não o inverso; anular a RCM (qual seria o mecanismo para o efeito?, uma chamadinha para o Largo do Rato?) deixaria a causa incólume; logo, o que é aliás uma questão de senso comum, apenas anulando a causa (a RAR) seria possível tornar nulas e de nenhum efeito as suas consequências (Decreto do PR n.º 52/2008, aviso nº 255/2010 do MNE, Resolução do Governo nº 8/2011). Até um “jurista” de vão-de-escada entenderia uma coisa assim tão simplezinha.