“Aperfeiçoamento”? Conversa da treta!

Rever, corrigir, melhorar o AO90. A ideia tem barbas e já se percebeu que a isso mesmo se resumem as intenções de assumidos acordistas e de supostos anti-acordistas em igual número. Ambas as seitas passaram todos estes anos a entreter o pagode, uns fingindo que o aleijão era para ficar assim mesmo, outros a fingir que pretendiam acabar com a maleita, mas por fim, conforme infalíveis sinais emitidos por uns e por outros desde pelo menos 2013,  aí os temos chegando a uma forma explícita de entendimento tácito — desde há muito delineado, se não mesmo combinado ao pormenor — em que os interesses de todos eles (os assumidos e os supostos) ficarão salvaguardados.

15/03/2016

 

Revista “Sábado”, 28 Janeiro 2017 • Lusa

Academia sugere regresso de acentos, hífen e não só ao Acordo Ortográfico

O documento Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 foi aprovado em plenário, na quinta-feira, por 18 votos, com cinco votos contra

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O documento de aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), aprovado na quinta-feira pela Academia de Ciências de Lisboa (ACL), propõe o regresso de consoantes mudas, do acento gráfico, em alguns vocábulos, do circunflexo, noutros, assim como do hífen.

O estudo propõe o regresso das consoantes mudas em palavras como “recepção” e “espectador”, ou seja, nos casos em que geram uma concordância absoluta de sons (homofonia) que podem causar “ambiguidade”.

O documento “Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” de 1990 foi aprovado em plenário, na quinta-feira, por 18 votos, com cinco votos contra.

Segundo a proposta apresentada, deve regressar o acento agudo em palavras com pronúncia e grafia iguais, as palavras homógrafas, referindo, entre outras, “pára”, forma do verbo parar, que se confunde com a preposição para, também “péla”, nome e forma do verbo pelar, que se confunde com a preposição “pela”.

Também é recomendado o regresso do acento circunflexo em diferentes vocábulos que são homógrafos a outros, por exemplo, o verbo “pôr”, para evitar confundir com a preposição “por”.

Defende o estudo o emprego do acento circunflexo “nas flexões em que a vogal tónica fechada é homógrafa de outra flexão da mesma palavra”, como os casos de “pôde”, forma do pretérito perfeito do indicativo do verbo “poder”, para se distinguir de “pode”, forma do presente do indicativo do mesmo verbo.

Também a forma “dêmos”, presente do conjuntivo do verbo “dar”, para se distinguir de “demos”, pretérito perfeito do indicativo, do mesmo verbo.

O acento circunflexo é igualmente recomendado para as terceiras pessoas do plural do presente do indicativo, casos de “crêem”,” lêem”, “vêem”, ou do conjuntivo, como “dêem”, dos verbos “crer”, “ler”, “ver”, “dar”, e seus derivados “relêem”, e “desdêem”, por exemplo.

O estudo defende a acentuação gráfica na terminação verbal “ámos”, relativa ao pretérito perfeito do indicativo dos verbos da 1.ª conjugação, todos os que terminam em “ar”. Esta acentuação da terminação verbal “amos” visa “distinguir da terminação ‘amos’ do presente do indicativo dos mesmos verbos”, como “terminámos” e “terminamos” ou “afirmámos” e “afirmamos”.

Quanto às consoantes mudas, nos casos em que geram uma concordância absoluta de sons (homofonia), sugere a Academia os termos “aceção”, que se pode confundir com “acessão” (consentimento), “corrector”, que se pode confundir com “corretor” (intermediário), “óptica”, relacionado com a visão, que se confundirá com ótica (audição), além de “receção” (recebimento) que se confunde com recessão (retrocesso), e “espectador”, diferente de “espetador” (o que espeta).

Conserva-se também quando a consoante muda “tem valor significativo, etimológico e diacrítico”, como por exemplo “conectar”, “decepcionado” e “interceptar”.

Segundo a argumentação da ACL “eliminam-se [as consoantes mudas] nos casos em que são invariavelmente mudas em todos os países de língua oficial portuguesa”

Deste modo “a grafia passa a ser única” nas palavras “acionar”, “atual”, “batizar”, “coleção”, “exato”, “inspetor” ou “projeto”.

Todavia, quando “se verifica oscilação de pronúncia na variedade portuguesa da língua”, recomenda a Academia, “preferencialmente, nestes casos, a manutenção da grafia com a consoante, para evitar arbitrariedades”.

Um dos exemplos dados é “fato”, na grafia brasileira, e “facto”, na grafia portuguesa.

Quanto ao hífen, é recomendação geral, por “clareza gráfica”, o emprego quando os elementos dos compostos, com a sua acentuação própria, não conservam, considerados isoladamente, a sua significação, ou seja, quando “o sentido da unidade não se deduz a partir dos elementos que a formam”.

Argumenta o estudo que se exige o emprego do hífen, em vocábulos como “água-de-colónia”, “braço-de-ferro”, “entra-e-sai” e “pé-de-meia”, e mantém-se nos termos que já o tinham como por exemplo “trouxe-mouxe”.

O hífen deve ser restaurado em expressões em que a soma dos elementos forma um sentido único, como por exemplo “faz-de-conta” e “maria-vai-com-as-outras”.

Também no interior de certos compostos vocabulares deve manter-se o hífen e o apóstrofo, como em “borda-d’água”, “cão-d’água”, “copo-d’água”, “mãe-d’água”, “marca-d’água”, “pau-d’água” e “pau-d’arco”, entre outros.

Já os vocábulos, dos quais se perdeu a noção de composição, como “mandachuva”, “paraquedas” e “paraquedista”, devem escrever-se aglutinadamente, o que não se deve cumprir relativamente aos “compostos com a forma verbal ‘manda-‘ e ‘pára-‘” que devem continuar “separados por hífen conforme a tradição lexicográfica”, casos de “manda-lua”, “pára-choques”, “pára-brisas”, e “pára-raios”.

O documento com as “Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” de 1990, aprovado pela Academia das Ciências, está disponível aqui.

Fonte: Academia sugere regresso de acentos, hífen e não só ao Acordo Ortográfico – Vida – Sábado

 

 

A “revisão” no Correio da Manha

Sinais de fumo

A única solução para o infeliz acordo passaria por rasgá-lo.

Por João Pereira Coutinho | 28.01.17

O acordo ortográfico é uma aberração linguística e um exercício de autoritarismo cultural. E não houve cultor da língua que, nestes últimos anos de polémica, não tenha denunciado o arranjo – em livros, artigos ou meras proclamações públicas. Isto, que devia ter levado o país ‘oficial’ a desconfiar, manifestamente não levou. E o acordo foi airosamente adoptado em documentos, escolas, jornais, quem sabe em sinais de fumo. Agora, a Academia de Ciências voltou a olhar para o mostrengo. E concluiu que, afinal, a ‘simplificação’ foi longe de mais porque a língua não é propriamente uma transcrição fonética. Coisas como consoantes mudas, acentos ou hífenes talvez devam regressar. Pessoalmente, a única solução para o infeliz acordo passaria por rasgá-lo. Mas ‘repensar’ também serve, desde que isso sirva para cobrir de vergonha a parolada nativa que abraçou o acordo sem parar para pensar.

Ler mais em: http://www.cmjornal.pt/opiniao/colunistas/joao-pereira-coutinho/detalhe/20170128_0026_sinais-de-fumo?ref=opiniao_outras

Criatura para durar

Os donos da Língua Portuguesa não reconhecem o que fizeram.

Por Leonardo Ralha | 29.01.17

Tal como o Viktor Frankenstein de Mary Shelley, também os membros da Academia de Ciências de Lisboa tiveram que olhar para a sua criatura. Pena que, ao contrário do médico que decidiu criar vida a partir dos mortos, os donos da língua portuguesa escolham não reconhecer o que fizeram, garantindo que “aperfeiçoar o Acordo Ortográfico não significa rejeitar a nova ortografia, mas antes aprimorar as novas regras ortográficas e retocar determinados pontos”. Certo é que recomendam o regresso de hífenes, acentos e até de algumas consoantes mudas, ainda que pelas piores razões. O documento divulgado pela Academia de Ciências de Lisboa mantém que as consoantes são “invariavelmente mudas em todos os países de língua oficial portuguesa” em palavras como ‘inspector’ e ‘projecto’, o que só se pode explicar por surdez. São no mínimo tão mudas quanto em ‘corrector’, só poupado à amputação devido à existência da palavra ‘corretor’, num sinal de que a criatura está para durar.

Ler mais em: http://www.cmjornal.pt/opiniao/colunistas/leonardo-ralha/detalhe/criatura-para-durar?ref=opiniao_outras

 

A tese da “revisão“, a vingar, representará (representaria) a consumação de uma espécie de “solução final” (Endlösung) para a liquidação sumária da ortografia da Língua Portuguesa.
1 de Janeiro de 2014

Mel com cicuta

Academia propõe um registo ortográfico “adequado à variante portuguesa”

As alterações propostas ao acordo ortográfico são um documento aberto. A Academia das Ciências quer agora discuti-las.

Nuno Pacheco

27 de Janeiro de 2017, 19:50

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Depois da aprovado na Academia das Ciências de Lisboa, na quinta-feira, por 18 votos contra cinco, o documento Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi hoje divulgado à imprensa. Tem três pontos essenciais e estes dizem respeito à acentuação gráfica, às sequências consonânticas e ao emprego do hífen. A ACL diz, no documento, que se trata “de um primeiro trabalho”, no sentido de que se “avance com a sistematização de critérios e orientações” visando “uma maior regulação” e “na defesa de um registo adequado à variante portuguesa.”

O Presidente da ACL, Artur Anselmo, gostaria que este documento servisse de base a uma discussão mais alargada. “A Academia”, diz ele ao PÚBLICO, “propôs uma reunião de todas as organizações que trabalham com profissionais da escrita: PEN Clube, a Associação Portuguesa de Escritores, a Sociedade Portuguesa de Autores e seria bom que também participassem organismos representativos dos jornalistas.” Esta reunião, ainda sem data marcada, articula-se, diz, “com a audição a que eu serei sujeito, e com muito gosto, na Assembleia da República. Estou à espera que me digam quando.”

As alterações ao texto do acordo ortográfico de 1990 (AO90) propostas coincidem com as que já tinham sido parcialmente antecipadas na comunicação social: a diferenciação de pára e para; pélo (de pelar), pelo e pêlo; pôr e por; recupera-se a terminação -ámos no pretérito perfeito para distinguir do presente do indicativo, -amos (ex: falámos, falamos); aceita-se a dupla acentuação em palavras como oxigénio/oxigênio ou tónico/tônico, mas com delimitação geográfica clara (uns em Portugal, outros no Brasil); retoma-se o acento circunflexo na 3.ª pessoa do plural do presente do indicativo, crêem, lêem, vêem, em lugar do creem, leem, veem imposto pelo AO90; nas sequências consonânticas recuperam-se as palavras que eram iguais em Portugal e no Brasil e que mudaram só em Portugal (concepção, recepção, etc), sugere-se a manutenção da consoante dita muda em certas palavras “para evitar arbitrariedades” (característica, por exemplo, em lugar de caraterística) e nos casos onde ela tenha “valor significativo, etimológico e diacrítico” (conectar, decepcionado, interceptar), mas sugere-se que continuem eliminadas em casos como acionar, atual, batizar, coleção, exato, projeto.

Por fim, no uso do hífen propõe-se a sua manutenção nas “expressões com valor nominal”, ou palavras compostas, como maria-vai-com-as-outras, em formas como luso-brasileiro, em vocábulos onomatopaicos (au-au, lenga-lenga), e propõe-se que se escreva pára-choques, pára-brisas ou pára-raios, mantendo-se escritas aglutinadamente palavras como mandachuva, paraquedas ou paraquedista. Há mais propostas, mas estes tópicos dão já uma ideia do que a ACL pretende sujeitar à discussão pública.

Artur Anselmo não tenciona deixar morrer o tema. “Isto é como uma campanha: se se silencia, cai no esquecimento. Precisamos de avivar a questão fazendo reuniões, trocando impressões, criando uma onda que vai crescer e perante a qual o poder político terá de tomar uma posição.” Mas conscientemente, acrescenta: “Tudo o que fizermos tem de ser feito com muito juízo: firme, mas apoiado na ciência e na cultura.”

[“Público” (edição em papel), 28.01.17. Destaques e “links” meus. Imagem de topo: “Bartoon”, de Luís Afonso.]

 

Concluída a versão “revista”, os portugueses passarão a ser o único povo do mundo cuja ortografia será determinada pela forma como se fala num país estrangeiro.
15 de Março de 2016

«Pirâmides, futebóis e ortografia» [Nuno Pacheco, “Público”]

Pirâmides, futebóis e ortografia

Nuno Pacheco

26 de Janeiro de 2017, 7:00

A haver algo em comum entre o futebol e o AO90, é isto: são ambos feitos com os pés. De resto, um une milhões e o outro divide-os.

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Em 1990, quando perguntaram ao poeta Mário Cesariny o que pensava das mudanças ortográficas que se anunciavam, respondeu com notável ironia: “Considero que o Acordo Ortográfico é um grande problema para brancos, negros e ameríndios. Proponho por isso que toda a gente aprenda latim, o fale em suas casas – e em público fale como quiser” (PÚBLICO, 24/12/1990). Depois dele, muitas vozes se levantaram: contra, a favor, assim-assim, talvez, tem-te-não-caias, haja lei e pronto. Deu no que se viu, e o tema ainda hoje nos ocupa e inquieta de igual modo. […] No Parlamento, onde o AO90 provoca súbitos ataques de surdez quando dele se fala, foi aprovada na Comissão de Cultura (por proposta do deputado José Carlos Barros, do PSD) a criação de um grupo de trabalho para avaliar o impacto da aplicação do AO90 em Portugal (o PS absteve-se) e a audição, por proposta do BE, do presidente da Academia das Ciências. Aqui, o voto foi por unanimidade.

Neste pequeno intervalo entre a rejeição total do dito e o seu eventual “aperfeiçoamento” (se é que tal será possível, ou desejável, e em que moldes), façamos como nas sessões de cinema antigas: peguemos em duas pequenas histórias a propósito, enquanto o “filme” principal não recomeça.

A primeira tem a ver com um país: Egipto. Perdeu, como se sabe, o P na liquidação de consoantes de 1990. Se no Brasil se escrevia assim porque não havia de ser igual em Portugal? Bem: no Brasil, como em Portugal, todas as palavras derivadas de Egipto mantêm o P; depois, há outro pequeno senão: é que Egipto, amputado para Egito, não é o único país cuja grafia difere entre Portugal e o Brasil. Há outros 24 (eram 25, com o Egipto). Basta conferir na lista dos 193 países-membros da ONU (primeiro vem, aqui, a grafia brasileira e depois a portuguesa): Armênia, Arménia; Belarus, Bielorrússia; Benin, Benim; Burkina Fasso, Burkina Faso; Catar, Qatar; Cingapura, Singapura; Coréia do Norte, Coreia do Norte; Coréia do Sul, Coreia do Sul; Eritréia, Eritreia; Eslovênia, Eslovénia; Estônia, Estónia; Iêmen, Iémen; Irã, Irão; Letônia, Letónia; Macedônia, Macedónia; Malauí, Malawi; Mônaco, Mónaco; Polônia, Polónia; Quênia, Quénia; Romênia, Roménia; Timor Leste, Timor-Leste; Turcomenistão, Turquemenistão; Vietnã, Vietname; Zimbabué, Zimbabwe. Mesmo que o acento agudo tenha desaparecido das Coreias ou da Eritreia (tal como foi abolido no Brasil, por via do AO, em idéia ou assembléia), ainda sobravam 21 grafias diferentes para 21 países! E isto sem falar noutras diferenças análogas, não em países mas em cidades, que ninguém mudou nem faria qualquer sentido mudar: Amsterdã, Amsterdão; Copenhague, Copenhaga; Madri, Madrid; Moscou, Moscovo; Teerã, Teerão; etc. Ou polonês por polaco, por exemplo. Razões para mudar apenas Egipto? Talvez por haver, entre os negociadores do acordo, um admirador da obra de Egito Gonçalves; ou por estar ali à mão um catálogo de viagens com pirâmides. Um dia saberemos.

A segunda história é, porventura, já muito conhecida mas é irresistível. Porque nesta discussão de afinar grafias há quem reivindique a necessidade de uniformizar até as áreas técnicas. Sim? Tentem o futebol. No Brasil, desporto é esporte; equipa é equipe ou time; chuto é chute; golo é gol; guarda-redes é goleiro; defesa central é zagueiro; médio é volante; avançado é atacante; avançado-centro é centroavante; jornada é rodada; pontapé de baliza é tiro de meta; pontapé de canto é tiro de esquina; meias-finais são semifinais; poste é pau; melhores marcadores são artilheiros; relvado é gramado. Como é possível, então, jogar futebol assim? A resposta foi dada há décadas: joga-se e pronto.

O que tem o dito “desporto-rei” a ver com o AO90? Isto: são ambos feitos com os pés. Um com arte, outro sem ela.

 

[Transcrição parcial (não propagandeio caganças) de artigo, da autoria de Nuno Pacheco, jornal “Público”, 26.01.17. Adicionei “links”.]

«Manuais Escolares: Sensacionalismo e Inconsequência» [Paulo Guinote, “Público”]

Manuais Escolares: Sensacionalismo e Inconsequência

Paulo Guinote

23 de Janeiro de 2017, 10:22

Há que ir além da arraia-miúda, ter coragem de elevar o olhar e apontar o dedo a quem tem mesmo grandes responsabilidades nisto tudo. E parar de acusar os professores.

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Alguns dias passados sobre os programas e debates da RTP3 e TVI sobre o processo de produção e comercialização dos manuais escolares, tendo pousado rapidamente a poeira levantada de forma muito agitada por aqueles dias, já é possível fazer um balanço do que (não) passou.

Comecemos pelo fim: a única consequência que se pode identificar daquilo tudo é que o Ministério da Educação (ME) vai encomendar um estudo para, em 2017, saber como é constituído o preço de um manual escolar. Sim, é verdade, com tanto grupo de trabalho e estrutura de missão ao longo das décadas, incluindo encomendas estranhas para sistematização de legislação já sistematizada por parte de alguém que também por ali passou, em Portugal, em 2017, aparentemente (sublinho o “aparentemente” por razões óbvias), o nosso ME não faz ideia da forma como se chega a um determinado preço de um artigo que ele impõe, em regra, como obrigatório para muito mais de um milhão de alunos (e esperemos por manuais para o pré-escolar, que deve ser o must da próxima temporada). Eu acho que o que se passa é outra coisa… o ME já sabe, sempre soube, mas precisava de um pretexto para anunciar o estudo que já deve estar mais do que alinhavado. Mas isso são os truques habituais para iludir a opinião pública.

Continuando. Comum a ambas as reportagens, embora com maior gravidade e ligeireza na da RTP, a imputação aos professores da responsabilidade por obrigarem os pais a comprar manuais, optando por aqueles em que os grandes grupos editoriais lhes dariam maiores ofertas, falando-se mesmo em viagens. Nada surgiu em qualquer das reportagens como prova documental da “denúncia”, muito pouco sobre o verdadeiro processo que determina o calendário e procedimento das adopções (responsabilidade do ME), nem grande coisa sobre tudo o que anda em volta dos materiais auxiliares que também são promovidos em catadupa em cada momento que um ministro ou secretário de Estado, pela sua cabeça ou como simples testa de ferro, decide alterar calendários e natureza de provas de avaliação externa ou inventa mesmo novas alterações às provas existentes ou aos programas das disciplinas, com destaque para o Português e a Matemática. Nada ainda sobre a implicação que a adopção do Acordo Ortográfico nas escolas de forma obrigatória teve em tudo isto.

O que apareceu de mais relevante: o enorme desperdício de manuais e outros materiais não adoptados ou não utilizados (reparem que não me pareceram manuais já usados a ser destruídos), algumas pessoas a fingirem que nada era com elas (o senhor da Autoridade da Concorrência, a ex-ministra que sacudiu para o secretário de Estado a responsabilidade por não ter conseguido um acordo com as editoras, o mesmo que não teve qualquer problema em não querer, sequer, um acordo com os professores sobre a sua carreira), outras com a pose de quem sabe dominar o “mercado”, um pseudo-arrependido a dizer banalidades sem concretização (o lamentável “promotor escolar”) e alguns professores a tentar descrever algumas perversões do sistema (o Luís Braga e o Carlos Grosso, por exemplo), mas parecendo ficar na mesa da edição o mais importante e decisivo em todo este processo e que é o nível da macro-decisão, aquela em que se decide o que muda, quando e que permitiu a existência de um processo de concentração e cartelização do mercado dos livros escolares.

O que passou ainda por aquelas reportagens foi uma enorme hipocrisia de algumas figuras que apareceram e o não cumprimento da promessa de denunciar certas cumplicidades institucionais e pessoais. Foi suave o tratamento dado a uma confederação parental demasiado prisioneira das suas parcerias, foi inexistente a relação estabelecida entre o secretário de Estado incapaz de negociar um acordo bom para o interesse público e o ex-secretário de Estado capaz de ir administrar um dos grupos empresariais do sector, bem como a investigação sobre a coincidência de preços entre manuais de grupos teoricamente concorrentes ficou pela mera enunciação do facto e apresentação de documentos de outros tempos. A verdade é que terão existido denúncias bem mais recentes para a Autoridade da Concorrência que ficaram por investigar, enquanto o seu dirigente máximo constata evidências e faz nada. O auto-branqueamento dos poucos políticos que apareceram já era esperado, estranhando eu mais que ninguém ligado aos pareceres do Conselho Nacional da Educação aparecesse a dar a cara pelo que escreveu, quando tão rápidos são a aparecer quando o assunto é outro. Tenho umas ideias sobre a razão, mas logo se verá qual o movimento editorial. O movimento editorial que também não foi investigado, fazendo uma verificação de nomes entre quem apoia a produção de legislação na esfera pública e quem publica na esfera privada a explicar aquilo que os normativos se esmeram por tornar opaco e carente de explicação anotada e comentada.

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