Gabinete de quê brasileiro em Lisboa?

Página “edição Portugal” da agência informativa espanhola EFE. Como tantas outras páginas do género (BBC, Twitter, Facebook, Google, ONU), também está redigida em brasileiro: “contato”, “prêmios” etc.

O cansaço é perfeitamente natural e aceitável quanto ao já enorme acervo noticioso e documental que envolve tudo aquilo que aqui foi dito e repetido, explicado, demonstrado, ilustrado. Esse cansaço (público) é o princípio fundamental da estratégia acordista e a anestesia mental a sua técnica de eleição. É à base de cansaço e anestesia que podem instaurar a política do facto consumado.

Boa parte dos episódios e incidências que marcam o processo de demolição cultural em curso têm sido neste “blog” persistente e sistematicamente relatados, escalpelizados, documentados, outro tanto sucedendo — as duas realidades são concomitantes e consequentes — com a metodologia e os objectivos de cariz político-económico que enformam o AO90 enquanto instrumento primordial do linguicídio do Português.

Efectivamente, desde o lançamento do plano de brasileirização, através e a pretexto de uma pretensa “unificação ortográfica”, até às mais recentes movimentações de bastidores, em especial nos meandros esconsos da chamada “diplomacia”, passando pelas sucessivas campanhas de propaganda e lavagem cerebral em massa através dos mais diversos organismos oficiosos, por fim já vamos vendo que afinal todas as peças do puzzle encaixam mesmo, que afinal não havia pessimismo algum nas previsões, que afinal as “teorias da conspiração” não eram teorias coisíssima nenhuma.

O plano original, ainda em tosco, urdido por meia dúzia de portugueses que foram expressamente ao Brasil traficar a Língua Portuguesa, nos idos de 1985 e 86, foi posteriormente redesenhado — então já com os préstimos de verdadeiros profissionais em desinformação, especialistas em psicologia de massas e especuladores bolsistas de alto gabarito — tendo sido “implementado” à força com base no “acordo” de 1990. Após um longo período de aparente letargia, a marcar passo, e contando com um paciente trabalho de “remoção” de obstáculos (apadrinhamento presidencial e governamental, assinaturas de 3 valendo por 8, pareceres ignorados, opositores silenciados, garantia de aprovação parlamentar), o AO90 seria finalmente aprovado em 2008 com a conivência da esmagadora maioria dos deputados que passeiam seus bocejos pelos Passos Perdidos.

Com tamanho triunfo nas mãos, o que equivalia a um cheque em branco passado pelo Estado português ao portador, então sim, o plano de brasileirização foi lançado a todo o vapor. A transcrição fonética do falar “culto” brasileiro — nisso consiste o acordo que de ortográfico nada tem — tornou-se obrigatório no Ensino e em todos os organismos oficiais (portugueses, só os portugueses, em tudo isto o papel do Brasil é exclusivamente o de assistir à paródia) a partir de 1 de Janeiro de 2010. E de então para cá foi, como diz(ia) o povo, um ver se te avias: a começar pelos “órgãos de comunicação social” — emissores de material de propaganda a soldo do patrão governamental — e a terminar nas instituições e empresas dos mais diversos sectores que são ou estão de alguma forma dependentes do Estado, gradualmente grande parte do tecido socioeconómico nacional “adotou” a cacografia brasileira.

Tudo decorreu entre os “mentideros” da política e os bares de porta fechada onde se cozinham e apuram os maiores pitéus em metal sonante, mas hoje em dia, decorridos 36 anos desde o lançamento do primeiro calhau, as mais diversas incidências — e até alguns aparentes acidentes de percurso — encaixam perfeitamente uns nos outros, como peças de Lego, compondo um quadro terrível que era até há poucos anos quase indecifrável.

Agora, quando vemos e lemos “notícias” sobre “queixas” de brasileiros por xenofobia, racismo e preconceito em Portugal, percebemos que isso não passa de mais uma manobra com finalidades políticas, que aquilo não é mais do que pura e dura vitimização, em busca de ainda mais dividendos e privilégios.

Agora entende-se com a maior das facilidades para que serve, ao certo, o “acordo de mo(r)bilidade” e como o AO90 serve de respaldo e cobertura política para essa manobra, sabendo-se que desde há muitos anos foram assinados acordos de mobilidade com vários dos PALOP, se não com todos eles. O mesmo vale para uma série de outras benesses gratuitas e ainda veremos o que mais virá.

Sempre com o AO90 a servir de pretexto ideológico e com a CPLP a funcionar como expediente para alguma cobertura política, foram subsequente e sucessivamente implementadas diversas medidas cujos únicos objectivos sempre foram — ao contrário do que faz constar a persistente propaganda governamental — privilegiar os interesses geoestratégicos e político-económicos da República Federativa do Brasil. É esse, aliás, o factor comum que explica a “adoção” forçada do “fálá” brasileiro, as represálias, a censura e a repressão de quaisquer contestações ou contestatários, a pulverização dos acordos diplomáticos entre Portugal e as suas ex-colónias africanas, o acordo de morbilidade (com gralha na designação oficial) e, por fim, a presidencialmente almejada dupla nacionalidade luso-brasileira “facilitada”, válida apenas para uma das partes.

É para que se cumpra este “projeto” de etapas múltiplas que surgem de permeio as manifestações folclóricas de vitimização a propósito das igualmente encenadas alegações de “racismo, xenofobia e preconceito“. Isto quando, afinal, se porventura tão negativos (e primitivos) sentimentos existem entre portugueses e brasileiros, então o exclusivo de semelhante aberração cabe por inteiro a brasileiros — não o contrário.

Já lá vão os tempos em que o sinistro plano foi sumariamente arquivado na gaveta sem fundo das “teorias da conspiração”. Por definição, uma teoria deixa de o ser quando factos verificáveis anulam qualquer carácter especulativo da premissa.

Aquilo a que vamos assistindo, com cada vez mais clareza e sempre sem deixar margem para a menor das dúvidas, é ao infindável desfilar de sucessivos “pacotes” de medidas governamentais que objectivamente delapidam o património histórico-cultural português.

https://www.onfm.pt/2020/01/10/matrafona-a-mulher-desleixada-mais-famosa-do-pais/Torna-se impossível contornar o ambiente de pesadelo que envolve tal desfile, algo como se fosse um corso de carnaval à antiga portuguesa, para variar, carros alegóricos com umas fitinhas (alusões à “língua universau”, claro) e mimos e cabeçudos e pantomineiros e sobretudo matrafonas, muitas, imensas matrafonas (acordistas, políticos, lacaios) com seus vestidos e enchumaços pretensamente engraçados, com suas pinturas grotescas enfeitando bigodes farfalhudos, com suas horríveis piadolas (o “porrtugueiss univerrsau”, a “expansão da língua”), com toda a sua confrangedora tristeza travestida de um arremedo de alegria avinhada e sórdida.


As três transcrições que se seguem constituem mais uma pequena amostra do percurso habitual.

Um político — sacando de um pretexto qualquer do restrito naipe de brasileirismo — enaltece o “dia mundial da língua” brasileira e “aproveita” para falar de uma coisa a que chama «agenda estratégica para a língua portuguesa», aproveitando a oportunidade para avançar com uma espécie de originalidade velha e relha: «plataforma de comunicação para o entendimento empresarial». Tentando escorar a “ideia”, a ver se cola, atira com a «cooperação cultural entre os dois países» e, para compor o ramalhete, refere «centros de investigação e associações locais da comunidade imigrante brasileira». Pronto. Está o mote lançado. Dará para várias glosas mas, assim de repente, dado o curto espaço temporal entre causa e (esta) consequência, serve a charla das “associações locais”.

Atirado o osso à comunicação social, esta lança-se com entusiasmo e apetite na busca de algum pretexto para reforçar a ministerial “ideia”. Por norma, nestes casos repete-se mesmo a “argumentação” usando até algumas expressões ipsis verbis. Basta portanto encontrar alguém (um qualquer “notável” ou uma organização) que se preste a cumprir as funções de idiota útil e fazer eco da mais recente inovação que ocorreu nas insondáveis circunvoluções cerebrais de tal indivíduo.

Biblicamente falando, ecce item, consummatum est. Ou, em Português vernáculo, bem mais simples, então pronto, está feito. A coisa fica ainda mais apimentada, salvo seja, se se meter uma agência estrangeira ao barulho, ainda que essa estrangeirice não passe de mais uma das imensas brasileiradas de que está o mundo virtual cheio.

E o mundo real a encher. Bem, pelo menos nesta “terrinha” que perdeu além do tino a última réstia de decência.

Celebrar o Dia Mundial da Língua Portuguesa

João Gomes Cravinho
“Público”, 04.05.22

O trabalho conjunto de Portugal e dos países da CPLP foi determinante para que a UNESCO decidisse, em 2019, que o dia 5 de Maio ficasse consagrado mundialmente à Língua Portuguesa.

A institucionalização de um Dia comemorativo assume uma importância, tanto real como simbólica, para a promoção da causa do reconhecimento e da disseminação da nossa língua. Ao longo deste dia, em múltiplas organizações internacionais, em variados organismos regionais, nacionais e locais, em diversas entidades de natureza distinta espalhadas pelos quatro cantos do mundo, a língua portuguesa será evocada, entoada, cantada, dita. Serão destacadas as suas enormes virtualidades como ferramenta de comunicação que, como poucas, dá a volta ao mundo. Será ressaltada a plasticidade que permitiu que se espalhasse, que crescesse, e que se constituísse como elo entre povos. Será uma ocasião para recordar o intenso dinamismo e a variedade que caracteriza a língua portuguesa, e a importância cada vez maior que assume na sua expressão cultural.

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Lusofobia: causa(s) e efeito(s) – 5

grupo Braguil no Facebook

“Bombardear Portugal”

 

lusofobia

lusofobia | n. f.
lu·so·fo·bi·a

(luso- + -fobia)

nome feminino

Antipatia ou aversão pelos portugueses ou pelas coisas de Portugal.

Palavras relacionadas: lusófobo.

“lusofobia”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/lusofobia [consultado em 21-07-2022].

Esta série de “posts” destina-se exclusivamente a documentar aquilo em que de facto consiste a lusofobia enquanto fenómeno sociológico, por assim dizer, já que a maioria das pessoas não apenas desconhece o conceito como nem mesmo alguma vez ouviu sequer falar de tal coisa. No fim de contas, o próprio termo presta-se a confusões visto que difere numa única letra de “lusofonia”; evidentemente, apesar da semelhança “sonora”, o significado do substantivo “lusofobia” — que remete para uma atitude concreta — não tem absolutamente nada a ver com a ideia abstracta e indefinida de “lusofonia”, uma palavra vazia de significado que serve apenas finalidades e objectivos políticos.

Nestes pressupostos e neste âmbito, os conteúdos aqui apresentados destinam-se, sem outras pretensões que não as evidenciadas expressamente, a esclarecer minimamente os menos informados, tentando explicar as causas e demonstrando os efeitos da lusofobia, mas sempre sem acicatar sentimentos ou estados de alma que, pela própria natureza dos enxovalhos, provocações e insultos envolvidos, vão já ameaçando vir a tornar-se num problema sério e, como por regra sucede neste tipo de questões baseadas em preconceitos, de resultados absolutamente imprevisíveis.

Mantenhamos, por conseguinte, um módico de contenção, deixando o proselitismo e a mentira como desde sempre foram, isto é, exclusivos de acordistas e seus acólitos, tendo sempre presente duas premissas tão óbvias quanto curiais: a lusofobia é uma afecção de sentido único, sem reciprocidade do lado português, mas nem por isso poderemos generalizar: mesmo contando com alguns casos patológicos entre figuras públicas naquele país, o fenómeno é ainda assim restrito, manifestando-se principalmente — como aliás por regra sucede com a xenofobia ou o racismo em geral — nas camadas mais ignorantes da população. Não confundamos, portanto, um bosque com o maciço da selva amazónica ou, dito de outra forma, mesmo que sejam muitos os trogloditas, ainda assim há bastantes que o não são de todo.

O que mais importa, por falar em bosque, é que nos não deixemos emboscar. Não sem ao menos dar luta.

Receita de bolinho de bacalhau

Queremos despedaçar Portugal
Matar e comer, eis nosso desejo.
Foda-se os bons costumes e a moral
Foda-se Camões, os Pedros, o Tejo.
Queremos bombardear Portugal
Seus livros, estátuas, navios, cruzes
Que este incêndio nos livre do mal
E limpando o tapete acenda as luzes.
Ai, queremos violentar Portugal
Escarrar na língua, cagar no porto
Ver um futuro em que seja banal
O luso passado enterrado e morto
O nosso seio está seco de leite
De Portugal apenas o mar e o azeite.

Bruna Kalil Othero

Contra-colonização em curso

José Manuel Diogo*
“Jornal de Notícias”, 14 Julho 2022

Quando a Câmara Brasileira do Livro escolheu Portugal como país convidado da Bienal do Livro de São Paulo, o maior evento dedicado à literatura e ao livro que acontece em todo o mundo de língua portuguesa, sabia que nesse convite existia um significado maior.

A CBL não nos escolheu “apenas” porque o Brasil comemora 200 de independência, 100 de Saramago ou porque Abel Ferreira, treinador e ídolo do Palmeiras, fez o gosto ao dedo e lançou um livro com enorme sucesso e na presença do próprio embaixador de Portugal em Brasília.

Todos estes motivos são bons, mas não são a causa da escolha, eles são a sua consequência. A causa é mais simples, menos evidente e, por isso, mais difícil de explicar.

Ela faz parte de um processo que se está se transformar num verdadeiro movimento (o primeiro) de contra-colonização na História. Desta vez planeado politicamente, organizado pelas elites e amplamente conhecido pelos povos.

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Lusofobia: causa(s) e efeito(s) – 4

Os brasileirófilos

Sem comentários.

Constituição da República Portuguesa

PARTE I – Princípios fundamentais
Artigo 9.º
Tarefas fundamentais do Estado

a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam; (…)
d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais (…);
e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português (…);
f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa; (…)

PARTE III – Organização do poder político
TÍTULO II – Presidente da República
Artigo 127.º – (Posse e juramento)

(…)
3. No acto de posse o Presidente da República eleito prestará a seguinte declaração de compromisso:
Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.

«Este é um primeiro episódio a tratar da massiva emigração de brasileiros para Portugal. Iniciaremos a reflexão juntamente com o apontamento do presidente Marcelo Rebelo de Sousa em seus pronunciamentos nos Consulados Gerais de Portugal no Rio de Janeiro e São Paulo. Para o presidente da República Portuguesa, “Está a haver uma invasão de Portugal por brasileiros”, e isso ocorre especialmente nos últimos 4 anos e coincide com o governo de Bolsonaro. Nunca antes na História do Brasil um presidente foi capaz de expulsar tantos cidadãos brasileiros… É mesmo uma pena… Muitos brasileiros chegam à Portugal desesperados, saídos de um Brasil de ódio, insegurança, injustiças, instabilidade política e caos social…»

[YouTube, André Carvalho LUSOaBRaço (Brasil)]

Marcelo: “Não há portugueses puros, como não há brasileiros puros”

Lusa
“Públiico”, 3 de Julho 2022

Na intervenção que encerrou a cerimónia de abertura da Bienal do Livro de São Paulo, Presidente da República considerou que orquestra com músicos refugiados “é um retrato daquilo que o Brasil é, que Portugal também gosta de ser, que é acolhimento de refugiados e de migrantes”.

[imagem]
[legenda] Marcelo Rebelo de Sousa discursou na abertura oficial da
26.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo

O Presidente da República afirmou este sábado à noite que “não há portugueses puros, como não há brasileiros puros”, depois de ouvir uma orquestra formada por músicos imigrantes e refugiados, em São Paulo.

Marcelo Rebelo de Sousa falava na abertura oficial da 26.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em que houve uma actuação da Orquestra Mundana Refugi, com músicos vindos da Síria, da Palestina, do Congo, da Guiné, da Tunísia e de Cuba, entre outros.

Esta orquestra tocou, entre outros, os temas As caravanas, de Chico Buarque, e Canto das três raças, que ficou famoso na voz de Clara Nunes.

Na intervenção, que encerrou esta cerimónia, Marcelo Rebelo de Sousa considerou que a Orquestra Mundana Refugi “é um retrato daquilo que o Brasil é, que Portugal também gosta de ser, que é acolhimento de refugiados e de migrantes”.

“Não há portugueses puros, como não há brasileiros puros. Somos todos cruzamento de todos. E temos honra em sermos cruzamento de todos. E isto é uma lição própria de sociedades cultas, avançadas, progressivas”, afirmou, em seguida, recebendo palmas.

No discurso, o Presidente da República declarou-se muito honrado por Portugal ser o país homenageado nesta edição da Bienal do Livro de São Paulo.

Segundo o chefe de Estado, isso quer dizer que “Portugal já não é só nem sobretudo o Portugal do passado, é o Portugal do futuro, é o Portugal da liberdade, é o Portugal da democracia, em que é possível ter um Presidente de direita com um Governo de esquerda”.

“É o Portugal da juventude, é o Portugal da nova literatura e da nova cultura”, acrescentou.

Marcelo Rebelo de Sousa defendeu, no entanto, que “se a língua portuguesa é importante no mundo é porque há muitos outros países irmãos que têm mais falantes, muito mais falantes, mais leitores e maior projecção nesse mundo” do que Portugal.

E apontou o Brasil como “uma potência cultural” desde “há muito, muito, muito tempo” e “uma potência cultural imparável”.

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O ‘regime do deixa andar’ [José Carlos Barros]

«José Carlos Barros (Boticas, 1963) é licenciado em Arquitectura Paisagista pela Universidade de Évora e vive no Algarve, em Vila Nova de Cacela. A sua actividade profissional tem sido exercida nos domínios do ordenamento do território e da conservação da natureza. Foi director do Parque Natural da Ria Formosa. É autor, entre outros, dos livros de poesia Uma Abstracção Inútil, Todos os Náufragos, Teoria do Esquecimento, Pequenas Depressões (com Otília Monteiro Fernandes) e As Leis do Povoamento (editado também em castelhano). Com Sete Epígonos de Tebas venceu o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2009. Em 2003 estreou-se na prosa com O Dia em Que o Mar Desapareceu. Venceu vários prémios literários (com destaque para o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, que lhe foi atribuído duas vezes) e os seus textos poéticos estão publicados em vários países. O Prazer e o Tédio foi o seu primeiro romance, seguido de Um Amigo Para o Inverno (Casa das Letras, 2013), com o qual foi finalista do Prémio LeYa em 2012. Os seus livros mais recentes (poesia) são os seguintes: O Uso dos Venenos, ed. Língua Morta (2ª edição, 2018), A Educação das Crianças, ed. Do Lado Esquerdo Editora, 2020, Estação – Os Poemas do DN Jovem, 1984-1989, ed. On y Va, 2020, e Penélope Escreve a Ulisses, Edições Caixa Alta, 2021.» [Wook]

 

Esta entrevista do arquitecto, ex-deputado e escritor José Carlos Barros mereceria talvez algumas observações, mas qualquer delas iria decerto dispersar atenções, desviando o enfoque do essencial.

Em traços gerais, as respostas — numa conversa amena, aliás muito bem conduzida — pintam um quadro que, a traço grosso mas a cores, transmitem uma ideia genérica da “paisagem” acordista, num enquadramento em versão bucólica e por isso paradoxalmente assustador, com algum gado vacum e muita carneirada pastando em descanso sob o olhar vigilante de alguns ciosos pastores.

Convirá recordar que o entrevistado foi, em 2017, o deputado relator do Grupo de Trabalho parlamentar para a avaliação do “Impato” do AO90 (por extenso, “Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, de sua graça)[ver Nota, em baixo].

Como diz? Contradição? Bem, com certeza que sim… mas se calhar não. Isto das ralações parlamentares é assim, complicado mas pouco, difícil mas não muito, ao fim e ao cabo trata-se de saber quem diz o quê, se o que diz é “na condição de” deputado ou “enquanto” cidadão e quando e por quem será decidido que afinal a posição final já não é a inicial, muito pelo contrário, vem de trás para a frente e vice-versa.

Para se entender o que pensam ao certo os que “andam na” política, todos eles deveriam ser forçados — como acontece nos filmes — a pendurar ao pescoço um cartaz com os dizeres “qualquer semelhança entre o que eu penso e o que o Partido manda é mera coincidência”.

José Carlos Barros:

“Esta asneirada do acordo ortográfico é uma metáfora da degeneração da nossa sociedade”

Diogo Vaz Pinto
11/07/2022
ionline.sapo.pt

Os leitores de poesia já se haviam deparado há muito com os inventários afectivos e a subtil ironia de José Carlos Barros. Mas depois de ter já sido finalista do Prémio Leya, com o terceiro romance, aquele cuja escrita se arrastou por uma década, conquistou o prémio e então… o quê? Logo se verá.

Já o chinfrim amainou, e deram por si esgotadas aquelas semanas mais intensas, publicitárias, depois do anúncio do Prémio Leya, resta agora ver de que modo assenta o pó depois desse pequeno pé de vento, sendo este o mais cobiçado pelo valor, pelo pequeno buzinão que se segue, isto quando há muito a literatura por si só não alimenta já grandes farras. A glória literária vive de ninharias e é o passatempo de uns tantos que não se cansam de jogar a feijões e uma ocupação de uns poucos demagogos do mistério, que se devotam a umas aleivosias de feira em feira, improvisando umas patetices choramingonas para essa gente que aparece a fingir de povo. Isto não diminui o empenho daqueles que ainda se esmeram e dão anos da sua vida, tantas horas para superar alguns emperros de ofício, esses que não se encostam ao tal do ‘dom’ mas se esfalfam para encontrar as suas páginas levando a cabo esse esforço de sondagem e conhecimento mágico da realidade, não passando ao lado nem por cima das agruras, dos aspectos mais rudes e esgotantes do quotidiano. Transmontano, nascido em Boticas, e vivendo há vários anos no Algarve, José Carlos Barros foi vereador municipal e ainda deputado na Assembleia da República (2015-2019). Tem-se mantido fiel ao mundo de que sempre foi íntimo, trazendo notícias tantas vezes miúdas, como uma chuva que preferisse a sua avara e honesta melodia a inventar às três pancadas uns vendavais ou tempestades muito postiças. Seja nos poemas que escreve desde a adolescência seja nos romances a que se abalançou já maduro, prefere dizer-nos as coisas claramente, apresentar-nos paisagens de punhos cerrados contra ídolos de pó, do que vir-nos com galanteios de sonhos parvos. Durante o mandato na assembleia, bateu-se como pode contra ‘o silêncio antidemocrático’ com que nos fazem engolir certas aberrações como este novo acordo ortográfico e tem sido sempre uma voz crítica da forma como se tem esquecido o interior do país e se marginalizou a riquíssima cultura das populações rurais. O romance que lhe valeu o Prémio Leya – As Pessoas Invisíveis – procede, de resto, a um ajuste de contas com um obscuro e sujo episódio do período colonial, mas também com esta mentalidade do deixa andar, este alheamento e até receio de enfrentar o passado, isto num país onde persistem as mofentas lérias sobre a grandeza dos nossos feitos, e em que aqueles que nos exaltam a identidade vêm sempre com aranhas na boca já a dobarem a História.

O teu percurso inicia-se com alguns poemas publicados no DN Jovem, é desse modo que primeiro te dás a conhecer.

O DN Jovem foi uma possibilidade que se oferecia a quem existia periférico a tudo isto de poder publicar. Eu cresço na província, numa vila, e o que fui conseguindo publicar foi em jornais regionais, sem grande expressão. Num tempo em que a imprensa escrita tinha uma importância enorme, essa possibilidade era realmente uma abertura imensa. De resto, o que fui escrevendo ao longo dos anos ia saindo em pequenas edições que não alcançavam qualquer expressão. Normalmente, ganhava um prémio literário desses que abundam por aí e editava um livro que, na maior parte dos casos, ficava perdido nalgum armazém, numa câmara municipal ou coisa do género. Por isso eram poucas as pessoas que conheciam o que eu escrevia.

(…)

Vivendo tu a maior parte da tua vida longe dos centros urbanos, residindo actualmente numa propriedade rural em Cacela Velha, e sendo a tua formação a de Arquitecto Paisagista, não sentes que existe uma relação distante, fria e de gabinete em relação a esse outro mundo? E não te parece que existe um paralelo a ser traçado com a forma como se definiu esta norma do novo acordo ortográfico?

Sim, não me é difícil traçar esse paralelo. Tanto na forma como encaramos aquilo a que se convencionou chamar ‘paisagem’, como na questão do novo acordo ortográfico, há uma simplificação assustadora, a qual parece estar associada a uma forma de iliteracia, uma certa desistência de tentar compreender verdadeiramente as coisas. A simplificação é sempre uma forma de desistência, e isto está patente tanto no acordo como nas políticas face ao território. A paisagem é de um certo modo o resultado da relação que se estabelece entre o homem e o território, e, portanto, as comunidades cultas, como eram as antigas comunidades rurais, comunidades profundamente ligadas ao espaço que habitavam e que, por isso, compreendiam a sua complexidade, tratavam o território de uma maneira que levava à criação de paisagens equilibradas e que garantiam essa sustentabilidade de que agora se fala tanto. À medida que nos fomos afastando dessa sabedoria – e afastarmo-nos dela é presumirmos que através da educação dos manuais conhecemos o mundo –, começámos a tratar o território de uma forma muito mais desastrada, e até com uma certa sobranceria. E depois é o mesmo mundo que destrói o território e que não estabelece ligações cultas com a paisagem que vem assumir com um fervor religioso que temos de salvar o planeta e a diversidade das espécies.

E na literatura?

Parece-me que na literatura se pode estar a passar algo de semelhante: fomos caminhando progressivamente para este afunilamento, definindo as regras segundo as quais tudo deve funcionar, e depois espantamo-nos que a criatividade tenha acabado sufocada debaixo dessas convenções. Ao mesmo tempo, perdemos de vista o que é essencial, aquilo que nasce à volta disso ou até alheio a esse subsistema, e que mantém a sua interrogação fora desse regime. Se pudesse vincar uma qualidade que julgo que existe na minha escrita é o parecer ainda estranha. Por exemplo, há vários dos meus poemas que se bastam com um olhar desarmado sobre as coisas à sua volta, sobre a paisagem, e o que me dizem dos meus poemas é que, apesar de breves, e não particularmente complicados, vincam essa estranheza.

(…)

Entendes essa resistência a noções como a de tradição como algo que deriva de uma angústia contemporânea em que muitas pessoas sentem que se não estiverem constantemente a demolir ou a cortar com o passado, não estão a ter um papel activo e a inventar o mundo em três dias, isto quando na compressão bíblica foram precisos sete dias para a criação do mundo?

É, há gente que, desse ponto de vista, parece ter uma ambição superior à de Deus. Parece que querem refazer as coisas ainda mais depressa, e é claro que têm mais sucesso no capítulo da destruição do que no da reconstrução. É curioso como regressamos sempre às questões da ruralidade… Cada vez admiro mais as comunidades rurais que conheci na minha infância e que, entretanto, foram sendo desmanteladas. E isto porque vejo nelas uma cultura secular e que, hoje, nos faz muita falta. Quando subitamente estamos todos a discutir as alterações climáticas e as medidas que é preciso tomar em termos ambientais, quando oiço dizer que é preciso recuperar agro-sistemas sustentáveis, etc., é incrível ouvir dizer isso e ter a consciência de que isso foi o que passámos as últimas décadas a destruir. Que coisa estranha que se oiça agora dizer – pelo menos em teoria, porque depois na prática já se sabe como as coisas se passam – estas coisas como se tivéssemos descoberto a pólvora, desejando-se regressar a formas de relacionamento com o território que foram aquelas que abandonámos num período que não ultrapassa o meu tempo de vida. Por isso é que me parece que deve haver também agora formas de resistência para não nos deixarmos seduzir por determinadas modas… Gosto da ideia de que a pólvora já foi inventada há muito tempo e que não precisamos de estar sempre a deixarmo-nos guiar por epifanias e a balançar entre noções contrárias que apenas prosseguem os fins do desmantelamento daquilo que foi construído com grande custo.

Voltando à questão do acordo ortográfico, como é que foi lidar de frente e enquanto deputado com um dos fenómenos que mais claramente nos demonstra o funcionamento dessa estupidez organizada e de gabinete que, depois de ser imposta, parece impossível travar?

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Uns grelhados e outros assados

«Ana Cristina Leonardo estudou Filosofia. Há muito ligada à edição e jornalismo, trabalhou na Assírio & Alvim e em diversos jornais e revistas. Mantém actualmente uma crónica no Expresso. Publicou em 2008 o livro infantil, ilustrado por Álvaro Rosendo, «Joaninha, a Menina que não Queria Ser Gente» e, em 2018, o romance «O Centro do Mundo». Tem três filhas e dois netos e vive no Algarve com dois cães.» [“Wook”]

Do encanto de uma galinha assada

Ana Cristina Leonardo

“Público” (suplemento “Ipsilon”), 08.07.22

 

 

Cinquenta e quatro anos após a morte de Manuel Bandeira — um reconhecido poeta maior do Modernismo brasileiro — Portugal é o convidado de honra da 26.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, a decorrer naquela cidade entre 2 e 10 de Julho.

Na informação oficial publicada no site do Instituto Camões, organismo criado em 1992 para a defesa e divulgação da língua e da cultura portuguesas a funcionar sob a alçada do Ministério dos Negócios Estrangeiros — e talvez nesse vínculo administrativo se encontre a explicação para a tenência de aço com que o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, o licenciado em economia Augusto Santos Silva, defendia o Acordo Ortográfico que só seria alterado por cima do seu cadáver, salvo seja… — pode ler-se que a comitiva integra “21 autores de Portugal, de Países Africanos de Língua Portuguesa e de Timor-Leste” a que “irão juntar-se dois renomados ‘chefs’, Vitor Sobral (sic) e André Magalhães”.

Não nos passando pela cabeça que a cultura — nomeadamente a literária — não seja para comer, ainda assim nos espantamos pelo destaque dado aos dois cozinheiros, mesmo se renomados. Afinal, tratando-se de um acontecimento ligado à edição e não a tachos e frigideiras, seria legítimo esperar que o acento fosse posto no nome dos escritores (e já agora em Vítor…) ou, pelo menos, que a lista dos participantes se apresentasse completa: ou há moral, ou comem todos!

Nada a obstar à relação entre estômago e literatura, binómio há muito ilustrado com excelência nos livros do crítico camiliano José Quitério, uma referência de estalo para todos os que nasceram antes da invenção dos pastéis de bacalhau com queijo da Serra ou da exportação dos pastéis de nata para o mundo. Podia referir ainda, provando que nada me move contra a arte da mesa, o hilariante ‘Cabeça, Coração, Estômago’ (Camilo Castelo Branco, Alêtheia, 2016). E há também, claro, aquele panfleto de JulienGracq, adequadamente chamado ‘A Literatura no Estômago’ (Assírio & Alvim, apresentação e tradução de Ernesto Sampaio, 1987) mas aí a salada é outra.

Sem abandonar o tema, é de toda a justiça juntar ao rolo corajoso texto do crítico António Guerreiro, publicado a 9 de Abril de 2011 no semanário Expresso (‘Retrato do Escritor Enquanto Saltimbanco’), a propósito “da edição desse ano do Festival Literário da Madeira, onde se punha em evidência o formidável convívio entre a ‘grande bouffe’ e “a pura substância espiritual” que moveria os promotores do encontro.

Não só de ‘chefs’ nos fala o Instituto Camões. Fica-se igualmente a saber que um dos objectivos essenciais da nossa participação é “promover Portugal como destino de múltiplas experiências de turismo literário”.

Supina!, pensei eu, já a imaginar ‘charters’ de turistas literários a quererem reservar o quarto do Largo do Carmo onde Fernando Pessoa viveu no princípio do século XX (disponível no Airbnb a preços razoáveis). Não será o mesmo do que dormir na cama do poeta na rua Coelho da Rocha, mas esse foi um privilégio reservado a ‘happyfew’ (se considerarmos um privilégio dormir, sob a ameaça de fantasmas, numa cama notoriamente desconfortável…).

Não me esqueci de Manuel Bandeira. Em 1930 inclui no seu livro ‘Libertinagem’ o poema ‘Poética’. Começa assim:

“Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem-comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor / Estou farto de lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo / Abaixo os puristas”

E vai por ali fora, espadeirando sem dó nem piedade:

“…Estou farto do lirismo namorador / Político / Raquítico / Sifilítico / De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.”

Para terminar com

“Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbedos / O lirismo difícil e pungente dos bêbedos / O lirismo dos clowns de Shakespeare — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”

Que diria hoje Manuel Bandeira do mote da participação portuguesa na Bienal, que, lemos no site do Instituto Camões, traz a assinatura de Valter Hugo Mãe:’ É Urgente Viver Encantado?’

Antes de mais, de onde surge o mote? De uma frase retirada ao ‘As Mais Belas Coisas do Mundo’, livro que é, e reproduzo do portal da editora: “A história de um menino que, dentro do abraço do avô, procura encontrar respostas para os mistérios do mundo. O avô, que tem ar de caçador de tesouros, revela-lhe o maior de todos para curar a tristeza e a despedida: o encanto”.

Cito o mote no seu contexto: “Eu queria ser sagaz, ter perspicácia, estar sempre inspirado. O meu avô pedia que não me desiludisse. Quem se desilude, morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantado. O encanto é a única cura possível para a inevitável tristeza”.

Podia agora falar do meu avô que nada me pedia (eu alheada dos meandros da inspiração…), limitando-se ele prosaicamente a passar-me em silêncio nacos vermelhos de melancia sem sementes, mas para voltar a Manuel Bandeira, se o ‘É Urgente Viver Encantado’ não tresanda a “lirismo bem-comportado” que se abata sobre mim uma praga de Alvor e, para quem não conhece, em comparação com as pragas de Alvor, Putin é um copinho-de-leite.

Pergunto: a que ponto chegou a infantilização (ou o aparvalhamento) dos espíritos para que lirismo tão pateticamente raquítico pudesse ser escolhido para mote de um pais com séculos de idade suficientes para ter juízo? E que dizer dos rodriguinhos linguísticos, do tom moralizador, da escrita inspiracional?

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